sábado, 17 de dezembro de 2011

O capitalismo chegou ao fim da linha

A crise actual não é de curta duração: é o grande desabamento de um sistema. Resta saber o que vai suceder-lhe, diz Immanuel Wallerstein nesta entrevista ao programa Interview na emissora de televisão russa RT.
Sophie Shevardnadze, Esquerda.net, 18 de outubro de 2011

A entrevista durou pouco mais de onze minutos, mas alimentará horas de debates em todo o mundo e certamente ajudará a observar melhor o período tormentoso em que vivemos. Aos 81 anos, o sociólogo norte-americano Immanuel Wallerstein acredita que o capitalismo chegou ao fim da linha: já não pode mais sobreviver como sistema. Mas – e aqui começam as provocações – o que surgirá no seu lugar pode ser melhor (mais igualitário e democrático) ou pior (mais polarizado e explorador) do que temos hoje em dia.

Estamos, pensa este professor da Universidade de Yale e personagem assíduo dos Fóruns Sociais Mundiais, no meio de uma bifurcação, um momento histórico único nos últimos 500 anos. Ao contrário do que pensava Karl Marx, o sistema não sucumbirá num acto heróico. Desabará sobre suas próprias contradições. Mas atenção: diferente de certos críticos do filósofo alemão, Wallerstein não sugere que as acções humanas são irrelevantes.

Ao contrário: para ele, vivemos o momento preciso em que as acções colectivas, e mesmo individuais, podem causar impactos decisivos sobre o destino comum da humanidade e do planeta. Ou seja, as nossas escolhas realmente importam. “Quando o sistema está estável, é relativamente determinista. Mas, quando passa por uma crise estrutural, o livre-arbítrio torna-se importante.”

É no emblemático 1968, referência e inspiração de tantas iniciativas contemporâneas, que Wallerstein situa o início da bifurcação. Lá se teria quebrado “a ilusão liberal que governava o sistema-mundo”. Abertura de um período em que o sistema hegemónico começa a declinar e o futuro se abre a rumos muito distintos, as revoltas daquele ano seriam, na opinião do sociólogo, o facto mais potente do século passado – superiores, por exemplo, à revolução soviética de 1917 ou a 1945, quando os EUA emergiram com grande poder mundial.

As declarações foram colhidas no dia 4 de Outubro pela jornalista Sophie Shevardnadze, que conduz o programa Interview na emissora de televisão russa RT (abaixo). A transcrição e a tradução para o português são iniciativas de Outras Palavras.

Há exatamente dois anos, disse ao RT que o colapso real da economia ainda demoraria alguns anos. Esse colapso está a acontecer agora?

Não, ainda vai demorar um ano ou dois, mas está claro que essa quebra está a chegar.

Quem está em maiores dificuldades: os Estados Unidos, a União Europeia ou o mundo todo?

Na verdade, o mundo todo vive problemas. Os Estados Unidos e União Europeia, claramente. Mas também acredito que os chamados países emergentes, ou em desenvolvimento – Brasil, Índia, China – também vão enfrentar dificuldades. Não vejo ninguém em situação tranquila.

Está a dizer que o sistema financeiro está claramente falido. O que há de errado com o capitalismo contemporâneo?

Essa é uma história muito longa. Na minha visão, o capitalismo chegou ao fim da linha e já não pode sobreviver como sistema. A crise estrutural que atravessamos começou há bastante tempo. No meu ponto de vista, por volta dos anos 1970 – e ainda vai durar mais uns vinte, trinta ou quarenta anos. Não é uma crise de um ano, ou de curta duração: é o grande desabamento de um sistema. Estamos num momento de transição. Na verdade, na luta política que acontece no mundo — que a maioria das pessoas se recusa a reconhecer — não está em questão se o capitalismo sobreviverá ou não, mas o que vai suceder-lhe. E é claro: podem existir dois pontos de vista extremamente diferentes sobre o que deve tomar o lugar do capitalismo.

Qual é a sua visão?

Eu gostaria de um sistema relativamente mais democrático, mais relativamente igualitário e moral. Essa é uma visão, nós nunca tivemos isso na história do mundo – mas é possível. A outra visão é de um sistema desigual, polarizado e explorador. O capitalismo já é assim, mas pode advir um sistema muito pior que ele. É como vejo a luta política que vivemos. Tecnicamente, significa a bifurcação de um sistema.

Então, a bifurcação do sistema capitalista está directamente ligada aos caos económico?

Sim, as raízes da crise são, de muitas maneiras, a incapacidade de reproduzir o princípio básico do capitalismo, que é a acumulação sistemática de capital. Esse é o ponto central do capitalismo como sistema, e funcionou perfeitamente bem por 500 anos. Foi um sistema muito bem sucedido no que se propõe a fazer. Mas desfez-se, como acontece com todos os sistemas.

Esses tremores económicos, políticos e sociais são perigosos? Quais são os prós e contras?

Se pergunta se os tremores são perigosos para você e para mim, então a resposta é sim, são extremamente perigosos para nós. Na verdade, num dos livros que escrevi, chamei-os de “inferno na terra”. É um período no qual quase tudo é relativamente imprevisível a curto prazo – e as pessoas não podem conviver com o imprevisível a curto prazo. Podemos ajustar-nos ao imprevisível no longo prazo, mas não com a incerteza sobre o que vai acontecer no dia seguinte ou no ano seguinte. Não se sabe o que fazer, e é basicamente o que estamos a ver no mundo da economia hoje. É uma paralisia, pois ninguém está a investir, já que ninguém sabe se daqui a um ano ou dois vai ter esse dinheiro de volta. Quem não tem certeza de que em três anos vai receber o seu dinheiro, não investe – mas não investir torna a situação ainda pior. As pessoas não sentem que têm muitas opções, e têm razão, as opções são escassas.

Então, estamos nesse processo de abalos, e não existem prós ou contras, não temos opção, a não ser estar nesse processo. Vê uma saída?

Sim! O que acontece numa bifurcação é que, nalgum momento, pendemos para um dos lados, e voltamos a uma situação relativamente estável. Quando a crise acabar, estaremos num novo sistema, que não sabemos qual será. É uma situação muito optimista no sentido de que, na situação em que nos encontramos, o que eu e você fizermos realmente importa. Isso não acontece quando vivemos num sistema que funciona perfeitamente bem. Nesse caso, investimos uma quantidade imensa de energia e, no fim, tudo volta a ser o que era antes.

Um pequeno exemplo. Estamos na Rússia. Aqui aconteceu uma coisa chamada Revolução Russa, em 1917. Foi um enorme esforço social, um número incrível de pessoas colocou muita energia nisso. Fizeram coisas incríveis, mas no final, onde está a Rússia, em relação ao lugar que ocupava em 1917? Em muitos aspectos, está de volta ao mesmo lugar, ou mudou muito pouco. A mesma coisa poderia ser dita sobre a Revolução Francesa.

O que isso diz sobre a importância das escolhas pessoais?

A situação muda quando se está numa crise estrutural. Se, normalmente, muito esforço se traduz em pouca mudança, nessas situações raras um pequeno esforço traz um conjunto enorme de mudanças – porque o sistema, agora, está muito instável e volátil. Qualquer esforço leva a uma ou outra direcção. Às vezes, digo que essa é a “historização” da velha distinção filosófica entre determinismo e livre-arbítrio. Quando o sistema está relativamente estável, é relativamente determinista, com pouco espaço para o livre-arbítrio. Mas, quando está instável, passando por uma crise estrutural, o livre-arbítrio torna-se importante. As acções de cada um realmente importam, de uma maneira que não se viu nos últimos 500 anos. Este é o meu argumento básico.

Sempre apontou Karl Marx como uma de suas maiores influências. Acredita que ele ainda seja tão relevante no século XXI?

Bem, Karl Marx foi um grande pensador no século XIX. Ele teve todas as virtudes, com as suas ideias e percepções, e todas as limitações, por ser um homem do século XIX. Uma das suas grandes limitações é que ele era um economista clássico demais, e era determinista demais. Viu que os sistemas tinham um fim, mas achou que esse fim se dava como resultado de um processo de revolução. Eu estou a sugerir que o fim é reflexo de contradições internas. Todos somos prisioneiros de nosso tempo, disso não há dúvidas. Marx foi um prisioneiro do facto de ter sido um pensador do século XIX; eu sou prisioneiro do facto de ser um pensador do século XX.

Do século 21, agora.

É, mas eu nasci em 1930, eu vivi 70 anos no século XX, sinto que sou um produto do século XX. Isso provavelmente revela-se como limitação no meu próprio pensamento.

Quanto – e de que maneiras – esses dois séculos diferem? São realmente tão diferentes?

acredito que sim. Acredito que o ponto de viragem deu-se por volta de 1970. Primeiro, pela revolução mundial de 1968, que não foi um evento sem importância. Na verdade, considero-o o evento mais significantes do século XX. Mais importante que a Revolução Russa e mais importante que os Estados Unidos terem-se tornado o poder hegemónico, em 1945. Porque 1968 quebrou a ilusão liberal que governava o sistema mundial e anunciou a bifurcação que viria. Vivemos, desde então, na esteira de 1968, em todo o mundo.

Disse que vivemos a retomada de 68 desde que a revolução aconteceu. As pessoas às vezes dizem que o mundo ficou mais valente nas últimas duas décadas. O mundo ficou mais violento?

Eu acho que as pessoas sentem um desconforto, embora ele talvez não corresponda à realidade. Não há dúvidas de que as pessoas estavam relativamente tranquilas quanto à violência em 1950 ou 1960. Hoje têm medo e, em muitos sentidos, têm o direito de sentir medo.

Acredita que, com todo o progresso tecnológico, e com o facto de gostarmos de pensar que somos mais civilizados, não haverá mais guerras? O que isso diz sobre a natureza humana?

Significa que as pessoas estão prontas para serem violentas em muitas circunstâncias. Somos mais civilizados? Não sei. Esse é um conceito dúbio, primeiro porque o civilizado causa mais problemas que o não civilizado; os civilizados tentam destruir os bárbaros, não são os bárbaros que tentam destruir os civilizados. Os civilizados definem os bárbaros: os outros são bárbaros; nós, os civilizados.

É isso que vemos hoje? O Ocidente a tentar ensinar os bárbaros de todo o mundo?

É o que vemos há 500 anos.

Tradução: Daniela Frabasile, publicada em Outras Palavras
Um artigo de 18 de Outubro de 2011outrapoliticaemsampa (versão original)