Que história fantástica esta, a de Francisco dos Santos, que muito poucos devem conhecer! Uma história de vida que também se cruza com a história da 1ª REPÚBLICA!
Pouco depois da implantação da República, abriu-se concurso para o Busto que a simbolizasse.
Francisco dos Santos, que fora jogador de futebol da Casa Pia, do Sport Lisboa e do Sporting e que, durante os seus tempos de estudante em Roma chegara a capitão da Lazio, ganhou-o. Impressionante a história da vida dele!
O pai era um sapateiro pobre em Paiões, vilarejo de Rio de Mouro, Sintra e Francisco dos Santos tinha dois anos quando ele morreu de uma «tísica fulminante», em 1880. Por especiais diligências do pároco da freguesia entrou para a Casa Pia de Lisboa em 1887. Lá, em Belém, seis anos depois, Januário Barreto e Bruno José do Carmo espalham entre os colegas a «novidade do jogo da bola» - e logo ele, franzino, mostrou, desconcertante, o seu jeito no futebol, como já mostrara no desenho, na escultura.
Para que se matriculasse na Escola de Belas Artes, em 1893 a Casa Pia deu-lhe, para despesas, subsídio mensal de sete mil rei, e para que às aulas fosse «vestido e arranjado convenientemente» pagou-lhe «seis camisas de pano cru, seis lenços de algodão de cor, seis pares de meias, três calças de brim, três calças de mescla, três ceroulas de pano cru, três jalecos de baetilha, três jaquetas de riscado, duas jaquetas de mescla, dois pares de sapatos e, ainda, uma unidade dos seguintes objectos - bonnet de pano azul, botins, escova para calçado, escova para dentes, escova para fato, jaqueta de pano azul, pente, saco de estopa e um bosquejo métrico», lê-se em documento de então.
Cinco anos volvidos terminou o curso com «distinção e medalha de prata».
Em 1903 ganhou um concurso de Escultura para pensionista na Escola de Belas Artes de Paris.
Dava para pouco, a bolsa, no Inverno. Faltando-lhe o dinheiro para o combustível do fogão, «embrulhava o corpo em folhas do Le Fígaro e do Le Matin e cobria-o com os fatos roçados que tinha». Era assim que se aquecia, e conta-se que arranjava ele próprio as botas que se esburacavam duravam uma década.
Casou-se com Nadine Dubose, e quando passava por Portugal nunca deixava de jogar oficialmente futebol pelo Sport Lisboa, que antigos colegas da Casa Pia ajudaram a fundar, em Belém.
Através de um subsídio Valmor em 1906 foi estudar para Roma.
Complicadas continuaram as finanças, sobretudo quando foi vítima de atraso no pagamento da bolsa, porque a «prova de assiduidade», obra denominada Crepúsculo, se perdeu num armazém da alfândega. Teve, então, de viver seis meses a crédito do senhorio, dando aulas de francês para pagar a comida. Nasceu-lhe o filho. Iam-lhes valendo os vizinhos que aos Santos davam alimentos.
Na esperança de que isso pudesse compor-lhe o orçamento, ofereceu-se para futebolista da Lazio, e assim se tornou o primeiro português a jogar no estrangeiro. Em 1907, já era capitão de equipa.
Épico foi o desafio que fez em Pisa: mesmo com duas costelas partidas num choque com adversário que fracturou seis e foi de escantilhão para o hospital, Francisco dos Santos continuou em campo. E a crónica do primeiro derby entre a Lazio e a Roma, na Gazetta dello Sport de 20 de Janeiro de 1908, ainda mais lhe afogueou a fama: «Em evidência estiveram o jovem Saraceni e o veterano Dos Santos, que com os seus 55 quilos foi impressionante e dos melhores em campo».
Em 1909, regressou a Portugal «com dezoito vinténs na algibeira».
Ainda jogou pelo Sporting, ajudou a fundar a Associação de Futebol de Lisboa e foi um dos seus primeiros árbitros. A partir daí, o seu prestígio alastrou e ele enriqueceu.
Logo após a revolução de 5 de Outubro, selos, cartazes, bilhetes postais, estampas, faianças, pisa-papéis, lenços de seda, tudo isso serviu, depressa, para propagação da ideia de que felicidade era a República, das imagens dos seus heróis. A moeda deixou de ser em réis, passou a ser em escudos. Dos nomes das ruas, dos teatros e dos clubes se afastou quase tudo o que tivesse a ver com monarquia.
A nova iconografia estendeu-se ao comércio e passaram a vender-se cigarros Presidente Arriaga e vinho do Porto Bernardino Machado, telhas Republicana e cacaus Democrata.
Foi ainda em 1910 que se lançou concurso para criação do Busto da República. Francisco dos Santos venceu-o. Contudo, por essa altura já havia outro. Dois anos depois, quando o Partido Republicano ganhou a Câmara de Lisboa, Braamcamp Freire, o seu presidente, encomendou-o a Simões d'Almeida (sobrinho), e essa foi a imagem que se usou, simbólica, nos funerais de Miguel Bombarda e Cândido dos Reis, e acabou por se sobrepor, em actos oficiais, moedas, brochuras, documentos, é a que está na Academia Nacional de Belas Artes (ANBA).
António Valdemar, o seu presidente, afirmou recentemente: «A peça em barro de Simões d'Almeida (sobrinho) criou a matriz e foi difícil à de Francisco Santos impor-se. Estava numa arrecadação e foi restaurada em 2009 pelo artista João Duarte». Não deixou, contudo, também de reconhecer: «O busto de Francisco dos Santos tem um toque mais de Paris, com uma mulher mais elegante, no de Simões d'Almeida (sobrinho) a mulher é mais portuguesa, com os seios mais fartos», e não muito antes, numa publicação do Grande Oriente Lusitano, lamentava-se: «O busto oficial da República, o de Francisco dos Santos, o mais belo, é capaz de ser o mais esquecido».
Para além da Estátua do Marquês de Pombal, são dele (de Francisco dos Santos) outros importantes monumentos: Marinheiro Ao Leme, no Cais do Sodré, Prometeu, no Jardim Constantino, e o Túmulo de Gomes Leal no Cemitério do Alto de São João. Também foi pintor e deixou o seu percurso marcado pelo nu feminino, de linhas sinuosas e movimentadas, a sensualidade da carne transporta para a pedra. Salomé Dançando, que esculpiu em 1913, é considerada por naipe largo de críticos a sua obra-prima. Fernando Pamplona viu-a assim: «Um belo corpo serpentino e rojo, em que o pecado da luxúria palpita e vibra em toda a sua fascinação terrível e mortal». Sobre a A Esfinge, o poético, o olhar de Aquilino Ribeiro: «Mimosa, duma impressão soberana, um pedaço de mármore onde passa uma pura e alta emoção de arte. Tendo a finura da La Pensée de Rodin, é mostra perfeita da mão nervosa e maleável». Igual deslumbramento pôs em Um Beijo e Nina – e Albino Forjaz Sampaio fez assim a síntese da sua obra: «Prende-nos os sentidos, faz pensar, faz sentir».
Quando Francisco dos Santos morreu, em 1930, com 58 anos, António Couto, arquitecto que fora seu companheiro no futebol da Casa Pia, do Sport Lisboa e do Sporting, traçou-lhe, emocionado, o retrato, e Carlos Enes reproduziu-o assim na biografia que lhe escreveu:
«Foi dos artistas do seu tempo o que mais trabalhou, o que mais modelos expôs, o que mais obras vendeu. A prosperidade material reflectiu-se na pequena barriguinha que lhe foi crescendo. Contudo, manteve-se sempre mexido, jovial e ruidoso, com as mãos atrás das costas e o chapéu às três pancadas, dando um ar de comerciante feliz nos negócios. Apesar de não o parecer, pelo seu feitio despretensioso, era bastante inteligente e culto, um musicólogo apaixonadíssimo, com presença assídua em concertos e, acima de tudo, um grande homem, um grande coração».
fonte cons.: http://www.abola.pt/mundos/ver.aspx?id=198302
Francisco dos Santos é o primeiro da direita, sentado na cadeira. |
Francisco dos Santos, que fora jogador de futebol da Casa Pia, do Sport Lisboa e do Sporting e que, durante os seus tempos de estudante em Roma chegara a capitão da Lazio, ganhou-o. Impressionante a história da vida dele!
O pai era um sapateiro pobre em Paiões, vilarejo de Rio de Mouro, Sintra e Francisco dos Santos tinha dois anos quando ele morreu de uma «tísica fulminante», em 1880. Por especiais diligências do pároco da freguesia entrou para a Casa Pia de Lisboa em 1887. Lá, em Belém, seis anos depois, Januário Barreto e Bruno José do Carmo espalham entre os colegas a «novidade do jogo da bola» - e logo ele, franzino, mostrou, desconcertante, o seu jeito no futebol, como já mostrara no desenho, na escultura.
Para que se matriculasse na Escola de Belas Artes, em 1893 a Casa Pia deu-lhe, para despesas, subsídio mensal de sete mil rei, e para que às aulas fosse «vestido e arranjado convenientemente» pagou-lhe «seis camisas de pano cru, seis lenços de algodão de cor, seis pares de meias, três calças de brim, três calças de mescla, três ceroulas de pano cru, três jalecos de baetilha, três jaquetas de riscado, duas jaquetas de mescla, dois pares de sapatos e, ainda, uma unidade dos seguintes objectos - bonnet de pano azul, botins, escova para calçado, escova para dentes, escova para fato, jaqueta de pano azul, pente, saco de estopa e um bosquejo métrico», lê-se em documento de então.
Cinco anos volvidos terminou o curso com «distinção e medalha de prata».
Em 1903 ganhou um concurso de Escultura para pensionista na Escola de Belas Artes de Paris.
Dava para pouco, a bolsa, no Inverno. Faltando-lhe o dinheiro para o combustível do fogão, «embrulhava o corpo em folhas do Le Fígaro e do Le Matin e cobria-o com os fatos roçados que tinha». Era assim que se aquecia, e conta-se que arranjava ele próprio as botas que se esburacavam duravam uma década.
Casou-se com Nadine Dubose, e quando passava por Portugal nunca deixava de jogar oficialmente futebol pelo Sport Lisboa, que antigos colegas da Casa Pia ajudaram a fundar, em Belém.
Através de um subsídio Valmor em 1906 foi estudar para Roma.
Complicadas continuaram as finanças, sobretudo quando foi vítima de atraso no pagamento da bolsa, porque a «prova de assiduidade», obra denominada Crepúsculo, se perdeu num armazém da alfândega. Teve, então, de viver seis meses a crédito do senhorio, dando aulas de francês para pagar a comida. Nasceu-lhe o filho. Iam-lhes valendo os vizinhos que aos Santos davam alimentos.
Na esperança de que isso pudesse compor-lhe o orçamento, ofereceu-se para futebolista da Lazio, e assim se tornou o primeiro português a jogar no estrangeiro. Em 1907, já era capitão de equipa.
Épico foi o desafio que fez em Pisa: mesmo com duas costelas partidas num choque com adversário que fracturou seis e foi de escantilhão para o hospital, Francisco dos Santos continuou em campo. E a crónica do primeiro derby entre a Lazio e a Roma, na Gazetta dello Sport de 20 de Janeiro de 1908, ainda mais lhe afogueou a fama: «Em evidência estiveram o jovem Saraceni e o veterano Dos Santos, que com os seus 55 quilos foi impressionante e dos melhores em campo».
Em 1909, regressou a Portugal «com dezoito vinténs na algibeira».
Ainda jogou pelo Sporting, ajudou a fundar a Associação de Futebol de Lisboa e foi um dos seus primeiros árbitros. A partir daí, o seu prestígio alastrou e ele enriqueceu.
Logo após a revolução de 5 de Outubro, selos, cartazes, bilhetes postais, estampas, faianças, pisa-papéis, lenços de seda, tudo isso serviu, depressa, para propagação da ideia de que felicidade era a República, das imagens dos seus heróis. A moeda deixou de ser em réis, passou a ser em escudos. Dos nomes das ruas, dos teatros e dos clubes se afastou quase tudo o que tivesse a ver com monarquia.
A nova iconografia estendeu-se ao comércio e passaram a vender-se cigarros Presidente Arriaga e vinho do Porto Bernardino Machado, telhas Republicana e cacaus Democrata.
Foi ainda em 1910 que se lançou concurso para criação do Busto da República. Francisco dos Santos venceu-o. Contudo, por essa altura já havia outro. Dois anos depois, quando o Partido Republicano ganhou a Câmara de Lisboa, Braamcamp Freire, o seu presidente, encomendou-o a Simões d'Almeida (sobrinho), e essa foi a imagem que se usou, simbólica, nos funerais de Miguel Bombarda e Cândido dos Reis, e acabou por se sobrepor, em actos oficiais, moedas, brochuras, documentos, é a que está na Academia Nacional de Belas Artes (ANBA).
António Valdemar, o seu presidente, afirmou recentemente: «A peça em barro de Simões d'Almeida (sobrinho) criou a matriz e foi difícil à de Francisco Santos impor-se. Estava numa arrecadação e foi restaurada em 2009 pelo artista João Duarte». Não deixou, contudo, também de reconhecer: «O busto de Francisco dos Santos tem um toque mais de Paris, com uma mulher mais elegante, no de Simões d'Almeida (sobrinho) a mulher é mais portuguesa, com os seios mais fartos», e não muito antes, numa publicação do Grande Oriente Lusitano, lamentava-se: «O busto oficial da República, o de Francisco dos Santos, o mais belo, é capaz de ser o mais esquecido».
Para além da Estátua do Marquês de Pombal, são dele (de Francisco dos Santos) outros importantes monumentos: Marinheiro Ao Leme, no Cais do Sodré, Prometeu, no Jardim Constantino, e o Túmulo de Gomes Leal no Cemitério do Alto de São João. Também foi pintor e deixou o seu percurso marcado pelo nu feminino, de linhas sinuosas e movimentadas, a sensualidade da carne transporta para a pedra. Salomé Dançando, que esculpiu em 1913, é considerada por naipe largo de críticos a sua obra-prima. Fernando Pamplona viu-a assim: «Um belo corpo serpentino e rojo, em que o pecado da luxúria palpita e vibra em toda a sua fascinação terrível e mortal». Sobre a A Esfinge, o poético, o olhar de Aquilino Ribeiro: «Mimosa, duma impressão soberana, um pedaço de mármore onde passa uma pura e alta emoção de arte. Tendo a finura da La Pensée de Rodin, é mostra perfeita da mão nervosa e maleável». Igual deslumbramento pôs em Um Beijo e Nina – e Albino Forjaz Sampaio fez assim a síntese da sua obra: «Prende-nos os sentidos, faz pensar, faz sentir».
Quando Francisco dos Santos morreu, em 1930, com 58 anos, António Couto, arquitecto que fora seu companheiro no futebol da Casa Pia, do Sport Lisboa e do Sporting, traçou-lhe, emocionado, o retrato, e Carlos Enes reproduziu-o assim na biografia que lhe escreveu:
«Foi dos artistas do seu tempo o que mais trabalhou, o que mais modelos expôs, o que mais obras vendeu. A prosperidade material reflectiu-se na pequena barriguinha que lhe foi crescendo. Contudo, manteve-se sempre mexido, jovial e ruidoso, com as mãos atrás das costas e o chapéu às três pancadas, dando um ar de comerciante feliz nos negócios. Apesar de não o parecer, pelo seu feitio despretensioso, era bastante inteligente e culto, um musicólogo apaixonadíssimo, com presença assídua em concertos e, acima de tudo, um grande homem, um grande coração».
fonte cons.: http://www.abola.pt/mundos/ver.aspx?id=198302