sábado, 3 de setembro de 2011

Da falta de autenticidade ao processo de compra do poder

Com a devida vénia, aqui publico este extraordinário texto/apresentação do Senhor Professor Adelino Maltez Porto, 24.04.1998. Uma abordagem politológica do tema da corrupção.


Pedem-me para, num congresso sobre ética e transparência, tratar de abordar, como politólogo, a questão da corrupção. É o que tentarei fazer, sem grandes pretensões moralistas e sem qualquer tipo de ilusão quanto a uma regeneração global do sistema vigente em termos de glasnot e perestroika, até porque ele não padece de concentracionarismo pós-totalitário.

Assim, procurando não confundir a nuvem com Juno, nem as árvores com a floresta, não utilizarei daquelas palavras fortes e dramáticas, com que se denuncia uma eventual situação de apodrecimento das nosssas instituições, próxima do finis patriae.

Este é um péssimo regime político, mas o menos péssimo de todos quantos temos tido.

Todos sabem, embora poucos possam judicialmente provar, que os muitos fumos de corrupção que por aí se denunciam, mesmo que seja no palco do congresso do maior partido político da oposição, são desses normais anormais das sociedades abertas e pluralistas que os mecanismos do Estado de Direito tentam regular. E o normal é haver desses anormais, até porque a democracia não passa de um sistema de institucionalização dos conflitos, sem o regime de sigilo das pretensas razões de Estado.

Ora, uma das missões fundamentais da ciência política, segundo a lição de Adriano Moreira, é a detecção da falta de autenticidade do poder, pela medição da distância que vai entre aquilo que se proclama e aquilo que se pratica. E recorde-se que só em democracia é que também há ciência política; só em democracia pluralista é que o poder instalado admite ser analisado como objecto laboratorial e, portanto, ser passível de uma crítica, de uma denúncia, face ao padrão normativo daquilo que se entende como boa sociedade e como o melhor regime político.

Na verdade, todo o poder corrompe; todo o poder se gasta pelo uso e se prostitui pelo abuso, quando passa a poder solto, ab-solto, das regras clássicas do controlo de poder, a que, ainda há pouco davam o nome de forças do bloqueio.

Aliás, como proclamava Lord Acton, se o poder corrompe, eis que o poder absoluto corrompe absolutamente (power tends to corrupt and absolute power corrupts absolutely), afirmação que Alain glosará, salientando que se o poder enlouquece, o poder absoluto enlouquece absolutamente.

E para a ciência política interessa sobretudo o como se governa?, isto é, a análise das formas de controlo de poder. Se o jurista sistémico procura, fundamentalmente, as leis formais, o ius positum incivitate, já a ciência política pretende descobrir os tipos funcionais de governação, o saber como se manda e o até onde pode mandar-se, detectando os métodos através dos quais os governos decidem e os limites do poder dos governantes, isto é, descobrindo a legitimidade do exercício e a dinâmica da política, passando do mero critério do valor ao critério do facto.

Aliás, a procura da falta de autenticidade do poder leva à descoberta do verdadeiro conceito de regime político, daquilo que o mesmo Professor Adriano Moreira qualifica como a solução que uma comunidade adopta para a sua convivência política. Isto é, para a expressão política de uma dada constituição material, onde não chegam as regras sobre a organização do poder político, importando também detectar o estilo de aplicação dos direitos fundamentais e a modelo vivo da organização económica e social. Neste sentido, a ciência política procura determinar o conjunto das instituições que regulam a luta pelo poder e o seu exercício, bem como a prática dos valores que animam tais instituições, para utilizarmos as palavras de Lucio Levi. Tenta analisar as instituições políticas na sua dinâmica, tal como elas são, comparando-as com a aquilo que elas devem-ser.

Só a partir daí é que se passa para a procura do sistema político, onde, para além da determinação das instituições constitucionais, interessa pesquisar os grupos que intervêm no processo político, isto é, as forças políticas, as forças económicas e as forças sociais, bem como as ideologias e o próprio enquadramento externo dessa unidade política.

Interessa-nos mais determinar o status in statu, o establishment, como dizia Almeida Garrett.

Ou, segundo as palavras de Jean Bodin, importa mais a forme de gouverner que l'estat d'une république. Porque, dentro de um mesmo estat d’une république (v.g., monarquia, aristocracia ou forma popular), pode haver várias formes de gouverner (v.g. a monarquia pode ser tirânica, senhorial ou justa; a aristocracia pode ter apoio popular; a forma popular tanto pode ter um governo efectivamente popular, como governos aristocráticos ou reais).

Entrando directamente na questão da corrupção, é evidente que o conceito em causa, para a ciência política, não corresponde ao sentido estrito da definição do tipo legal constante do Código Penal: o funcionário que, por si, ou por interposta pessoa, com o seu consentimento ou ratificação, solicitar ou receber dinheiro ou promessa de dinheiro ou qualquer vantagem patrimonial, que não lhe sejam devidos, para praticar acto que implique violação dos deveres do seu cargo (a passiva); bem como a activa - quem der ou prometer a funcionário, por si ou por interposta pessoa, dinheiro ou outra vantagem patrimonial que ao funcionário não sejam devidos.

Em ciência política, o conceito de corrupção em sentido amplo, é equivalente à ideia de degenerescência do poder, conforme já foi teorizada por Platão e Aristóteles. Neste sentido, na senda de Raymond Aron, podemos dizer que, nos actuais regimes pluralistas, há duas formas de corrupção: uma que tem a ver com as dificuldades de enraizamento das jovens democracias (o pas encore) e outra com os riscos de decomposição das democracias estabilizadas (o déjà plus). Entre as dificuldades de enraizamento costumam invocar-se cinco:

-o não respeito da norma constitucional

- a manipulação das práticas constitucionais por uma oligarquia

- a competição muito violenta dos diferentes grupos que formam a minoria dirigente

- a limitação das reivindicações populares durante as primeiras fases dos regimes constitucionais

- a eventual falta de administradores

Já no tocante aos riscos de decomposição:

-a crise resultante dos crescimento dos movimentos de sublevação, de esquerda e de direita

-o excesso do espírito de compromisso "quando a procura do compromisso se substitui à procura da solução" conduzindo à "paralisia"

-o excesso do espírito revolucionário, quando os governandos se conduzem como governantes e os governantes como governados, quando os governados só reivindicam e os governantes não decidem

-o indiferentismo perante a existência de uma maioria absoluta

-o cesarismo

-o laxismo

-a falta de alternativas democráticas perante a existência de um partido sistema

-a personalização do poder.

Contudo, não deixa de haver, em ciência política, um conceito estrito de corrupção: o processo de compra do poder, enquanto mercadoria (Serguei Kurguinian). Um processo que apenas se manifesta quando o poder degenera e passa a mercadoria, implicando a existência de um vendedor (um detentor de certo poder), um mercado e um comprador, comprador que, normalmente constitui uma oligarquia possuidora de dinheiro que procura trocá-lo pelo poderio.

Por outras palavras, entre os processos normais de influência junto dos detentores do poder, levados a cabo pelos grupos de interesse e pelos grupos de pressão, há uma especial forma de pressão chamada corrupção, onde se influencia decisivamente o detentor de poder, utilizando formas de compra, directas ou indirectas, de maneira que o político desaparece, ressurgindo o atavismo do doméstico, quando o Estado passa a ser gerido como se fosse uma casa, quando o príncipe volta a ser um dono ou um pai, esquecendo-se que deve obediência a formas de justiça distributiva e social e que, nos negócios públicos, não pode introduzir a privatização da justiça comutativa.

Enumerados os conceitos operacionais, diremos que a discussão pública portuguesa em torno da questão da corrupção padece de um excesso de juridicismo, fazendo esquecer-nos aquela máxima do jurista Javoleno, para quem omnis definitio periculosa est. Com efeito, as definições jurídicas exaustivas, principalmente no tocante a conceitos analógicos e a expressões polissémicas, são extremamente perigosas.

No caso da corrupção, podemos até dizer que mais de noventa por cento das condutas sociais passíveis de qualificação politológica de corrupção não se enquadram no tipo criminal de corrupção.

Daí a confusão, que acaba por conduzir a gravíssimas consequências, dado que se pede ao direito criminal aquilo a que nem a totalidade do ordenamento jurídico pode dar resposta.

Com efeito, importa recordar que nem tudo o que é normativo é jurídico. As ordens normativas da sociedade não se confundem com a norma jurídica. O dever-ser necessário para a nossa convivência social não se reduz ao espaço jurídico, bastando recordar a existência de um amplo espaço de moral social.

Pedirmos à zona do direito que tenha capacidade para cobrir todo o espaço das condutas humanas ou esquecermos que numa boa ordem jurídica a esmagadora maioria das normas são espontaneamente cumpridas, são dos tais defeitos de juridicismo farisaico que raramente é provocado pelos juristas.

Não nos esqueçamos também da velha máxima estóica, segundo a qual nem tudo o que é lícito é honesto.

Um acto perfeitamente lícito pode ser perfeitamente injusto, até porque há leis injustas.

Um acto perfeitamente legal pode ser um acto perfeitamente imoral.

Um bom político que também seja um bom jurista, isto é, que conheça a distinção entre a moral, a política e o direito, também é capaz de confundir a moral, a política e o direito perante os que não estão traquejados em tais distinções doutrinárias.

Ele sabe, de ciência jurídica certa e de experiência política vivida, que um acto perfeitamente lícito do ponto de vista do direito positivo, pode também ser totalmente imoral e passível de uma forte censura política. Sabe que os tribunais deste Estado de Direito apenas podem julgar segundo o direito estabelecido e não segundo a moral ou os juízos de valor da política.

Quando esse jurista é também detentor do poder, ele sabe que, em nome do mesmo povo que dá aos tribunais o poder de julgar, ele tem o poder de propor leis, de ser co-autor de decretos-lei e de editar regulamentos, o que inclui, nomeadamente, a revogação das leis, dos decretos-lei e dos regulamentos que estão em vigor.

Sabe também que não tem poderes para revogar normas morais ou para estabelecer novos conceitos de justiça, mas que, com jeito político e muita demagogia, pode virar o bico ao prego, lavar aos mãos como Pilatos e dispensar Barrabás da crucificação.

Por tudo isto têm aparecido detentores do poder em Portugal, e em sucessivos governos, que fazem maravilhosos exercícios dialécticos, onde, como membros de órgão de soberania, com poderes executivo e legislativo, manipulam a política com a engenharia conceitual do direito, dando ares de quem tem a protecção da moral. E, recordando os velhos certificados de comportamento moral e político, caem, por vezes, na tentação de pedi-los a inspectores-gerais e a procuradores-gerais, como se eles fossem os teólogos da Mesa da Consciência e a fonte dos conceitos de justo e dos conceitos de moral, quando eles apenas actuam na dependência do direito estabelecido na cidade, isto é, da opinião conjuntural.

Porque, quem detém o poder, detém a palavra, demonstrando, perante os representantes do chamado quarto poder, que, no Estado a que chegámos, o espectáculo constitui a principal fonte dos votos.

Mais: muitas vezes proclamam, por portas travessas, que o poder político aceita a maquiavélica oposição entre moral e política, bem como o conceito positivista de direito, onde o ser não depende do dever-ser e a segurança é preferível à justiça. Por outras palavras, acabam por defender a teoria voluntarista dos que dizem que o bem é bem porque o poder quer e que o mal é mal quando é mal para o poder que está.

Quando os políticos tentam dizer que aos tribunais é que compete tudo julgar, apenas estão a procurar escapar àqueles julgamentos que os tribunais não podem fazer. É que, numa democracia, os detentores do poder também têm de ser julgados segundo a moral e segundo a política, isto é, segundo a consciência dos cidadãos e segundo a opinião pública.

Os actos administrativos dos membros do governo ou do parlamento e as condutas privadas dos cidadãos que nos governam ou representam, mesmo quando não são contra legem, podem infringir a moral e a boa política. E tal como as inspecções ministeriais não são tribunais, também estes não podem ser eleitorados, opiniões públicas ou consciências individuais.

Com efeito, todos podemos exigir que os nossos governantes e representantes vivam como dizem pensar e, portanto, que num regime que se arvora em defensor da solidariedade e da justiça social não possa haver figuras públicas que se comportem segundo os valores do far west, misturando o charme indiscreto do jet set com almas de corsário.

Nós, cidadãos, podemos e devemos exigir que os nossos governantes e representantes sejam efectivos servi ministeriales, dado que os poderes que detêm, enquanto funcionários da nossa coisa pública, mais do que direitos subjectivos, são simples poderes-deveres. Podemos e devemos exigir que os nossos governantes se submetam à lei que eles próprios editam e executam. Não poderemos tolerar que a democracia se transforme num qualquer orientalismo, onde, como denunciava Montesquieu, tout se réduit à concilier le gouvernement politique et civil avec le gouvernement domestique, les officiers de l'État avec ceux du sérail.

Temos que dar a césar o que é de césar e ao mercado o que é do risco. Não podemos admitir que queiram transformar Portugal numa espécie de pátria, sociedade anónima com governantes de responsabilidade muito limitada, misturando a mentalidade banco-burocrática do intervencionismo com a atitude laxista do liberalismo a retalho.

As fronteiras entre o Estado-aparelho de poder e o Estado-comunidade (a que muitos dão o nome de Sociedade Civil) têm de estar perfeitamente demarcadas. Não pode tolerar-se que um novo poder económico brote do velho proteccionismo estadual.

Quem quer enriquecer, que vista a pele do capitalista e concorra lealmente com todos os outros que também querem enriquecer.

Mas não misturem público com alhos e privado com bugalhos. Menos Estado nunca foi privatizar o público nem melhor Estado, publicizar o privado. Escrever Direito por linhas tortas só a Deus pertence.

A questão da corrupção mais do que mera questão penalista ou que questão jurídica é, acima de tudo, uma questão de moral social ou de moral de costumes. Tem mais a ver com a cultura política de uma geração do que com poder judicial. Só se reduz a mera questiúncula jurídico-processual, quando se adopta uma perspectiva hedonística, de matriz utilitarista, aquela que reduz o direito ao mínimo ético, àquelas normas morais mínimas que o poder estabelecido pode editar, porque, comunitariamente se lhe atribui a soberania quanto ao estabelecimento da moral.

A polis tem de possuir uma liderança, um comando, mas não pode deixar de ter participação cidadânica. A polis precisa da verticalidade de um poder, mas não prescinde da horizontalidade da cidadania. Ela tem de ser auto-suficiente, mas não pode deixar de permitir que o governado também seja governante, que também ele participe na decisão.

O exagero da liderança, da estruturação vertical, leva a que surja uma pirâmide do poder, onde no vértice se constitui uma elite, os poucos da sede activa do poder, e na base se conglomera a sede passiva do poder, os muitos.

Ora, é assim que surge a diferenciação entre governantes e governados, vistos, respectivamente, como dominantes e dominados, distinção que talvez contrarie um radical conceito de cidadania democrática.

Por um lado, os poucos tendem para o elitismo, para a partidocracia, para o burocratismo e para o enriquecimento próprio, nomeadamente para a degenerescência da corrupção, esse processo de venda do poder enquanto mercadoria que implica a existência de um vendedor e de um comprador, onde, num dos pólos da relação temos o burocrata ou o actor político investido de poderes e, no outro, uma bandocracia possuidora de dinheiro, enquanto nos intervalos pululam os híbridos, os estratos corrompidos que pertencem ao mesmo tempo à burocracia e à bandocracia.

Por outro lado, os muitos tendem para a indiferença e para a apatia, e não para aquela participação política que tanto se traduz nos apoios como nas reivindicações.

Com efeito, o processo político, o processo de conquista do poder, se adoptarmos uma perspectiva da poliarquia pluralista, consiste num processo de conquista da adesão do governado.

O processo político não se reduz à luta pelo poder supremo ou à conquista do poder de sufrágio. O processo político é global e desenrola-se em todo o espaço societário.

O poder político não é uma coisa, é uma relação. Uma relação entre a república e o principado, entre a comunidade e o aparelho de poder e destes com um determinado sistema de valores.

Tal como o Estado, enquanto quadro estrutural de exercício do poder, enquanto estrutura de rede (network structure), enquanto espaço de regras do jogo e de enquadramento institucional do processo de ajustamento e de confronto entre os grupos, não é também uma coisa, mas antes um processo.

O poder político é, conforme a clássica definição de Max Weber, uma estrutura complexa de práticas materiais e simbólicas destinadas à produção do consenso. Isto é, um poder político, ao contrário das restantes formas de poder social, implica que haja uma relação entre governantes e governados, onde o governante exerce um poder-dever e o que obedece, obedece porque reconhece o governante pela legitimidade deste. Em suma, o poder político vive sobretudo da obediência pelo consentimento.

Assim, o espaço normal do processo político é o da persuasão. O da utilização da palavra para a obtenção da adesão e do consentimento.

Só quando falha este processo normal de adesão comunicativa é que o governante trata de utilizar a persuasão com autoridade, com o falar como autor para auditores, onde o autor está situado num nível superior e o auditor no nível inferior da audiência.

Num terceiro passo vem a astúcia. Isto é, quando falha a comunicação pela palavra, mesmo que reforçada pela autoridade, vem o engodo, a utilização da ideologia, da propaganda ou do controlo da informação.

Só como ultima ratio se utiliza a força – física ou psicológica, o uso efectivo da mesma ou a ameaça da respectiva utilização – para obter o consentimento; para forçar à obediência independentemente do consentimento.

O poder político não pode apenas ser visto na perspectiva unidimensional daquela perspectiva elitista que o concebe como uma pirâmide onde, em cima, está a classe política dos governantes e, na base, a larga planície dos súbditos ou governados. Há que perspectivar também a perspectiva bidimensional, que aponta para a existência de uma face invisível do poder, onde quem governa tende sempre a controlar o programa dos debates, bem como aquela perspectiva tridimensional que confunde os interesses do que dá o consentimento.

A estrutura banco-burocrática refinada pelo Estado Providência leva, inclusive, a que algumas decisões fundamentais do sistema político passem a ser tomadas a nível do poder bidimensional e tridimensional, na face invisível da política, através do diálogo oculto com os efectivos membros da segunda câmara. Isto é, dá-se a convergência da união dos interesses económicos dos chamados parceiros sociais com o processo de holding não aparente dos financiadores do sistema partidário e das campanhas eleitorais.

Por outras palavras, o poder político, hipostasiando o monopólio da representação política acaba por ter de ceder aos micropoderes económicos e sociais, através dos respectivos grupos de interesse e de pressão. Só um voluntarismo no sentido da politização do sistema político, garantindo a representação das minorias e permitindo o acesso de independentes à participação no jogo político reforçaria o pluralismo político da democracia.

Sobre a relação Estado / Sociedade, eis que a palavra crise se tem tornado obsidiante. E com justeza. Vivemos, com efeito, no centro da vagalhota de uma daquelas crises estruturais que, se não conduzem à ruptura do finis patriae ou de um mais apocalíptico fim da história, pode contribuir para a chamada decadência e pôr em causa os factores democráticos da formação de Portugal, isto é, da mais antiga comunidade política autodeterminada da Europa.

Uma crise que não se debela com panaceias programáticas ou ideológicas de curto prazo, nem com as utopias da revolução, mas antes através de um trabalho de militância cívica, de médio e longo prazos, onde os objectivos têm de ser marcados por um ideal histórico concreto, as metodologias que assumir-se como reformistas, e os valores, como permanecentes.

Julgamos que o debate dos anos setenta e oitenta em torno da dialéctica colectivismo / liberalismo, que muitos subliminarmente confundem com o dualismo Estado / Sociedade, perdeu o sentido nesta fase pós-socialista e de desconstrução daquele Estado Providência que foi um Estado de Bem Estar e que agora é um Estado de Mal Estar.

De um Welfare State muito à portuguesa, aliás, que, tendo sido fundado pelo salazarismo como Estado Novo, com algum atraso comparativamente a Napoleão III e a Bismarck, diga-se de passagem, nem por isso deixou de ser o respectivo herdeiro, quando gerido pelo marcelismo, pelo gonçalvismo e pela pós-revolução, donde, em muitos subsistemas, ainda não saímos.

As linhas de força programáticas que apontavam para o mais sociedade, menos Estado e para a libertação da sociedade civil, mesmo quando remodeladas pelo agiornamento do menos Estado, melhor Estado, ou de menos Estado, mais sociedade, têm um sabor algo retroactivo depois da experiência das maiorias absolutas e dos governos monopartidários e, muito principalmente, face ao actual processo de revolução globalista a que, entre nós, acresce a aventura de participação no projecto europeu.

Porque, perante um Estado que é, ao mesmo tempo, grande demais (no centralismo, na burocratite, no gestionarismo e no regulamentarismo), e pequeno demais (face aos desafios da internacionalização da segurança, da economia e das ameaças globais do risco maior, seja armamentismo, ambiente, doença ou fome), isto é, um Estado com muita adiposidade, pouco músculo e terrível défice de nervos, persistirmos em serôdios soberanismos de pacotilha acaciana é minguarmos, senão suicidarmos, o essencial daquela realizável vontade de sermos independentes que nos fundou, manteve e restaurou em anteriores crises de viabilidade.

O Estado e a Sociedade apenas são dois dos rostos da comunidade politicamente organizada, de uma comunidade política que tem de se manter viável face ao exterior e fiável face ao interior. O Estado e a Sociedade correm o risco de se perderem nas teias dissolventes de uma mundialização que tanto tem novas formas de público, os grandes espaços, como novas formas de privado, a internacional das sociedades civis.

O Estado e a Sociedade não são coisas, são processos, exigem-se mutuamente, não podendo entrar num duelo revolucionário ou contra-revolucionário, que, enfraquecendo-os, acaba por inviabilizar a comunidade política que devem servir.

A questão fundamental não está na visualização da sociedade como um contrapoder, mas no assumir da plenitude da democracia.

É que, em democracia, o Estado não é um c'est moi do soberano exterior à sociedade. Em democracia, o Estado é um c'est nous, um c'est tout le monde. Em democracia, o Estado somos nós, os cidadãos, os que têm o dever e o direito de participar na decisão e de escolher os representantes.

Nós, cada um de nós, os homens comuns, somos as únicas realidades substanciais da política. Os grupos, as instituições e a própria instituição das instituições que abstractizámos como Estado, não passam de meras realidades relacionais, de formas que devem servir o conteúdo: os homens que as vivificam.

O fundamental está no refazer da aliança, ou da comunhão, entre o Estado a que chegámos e a Sociedade que temos. Está menos na contratualização de duas fraquezas e mais no estabelecimento de uma institucionalização, onde 1+1 seja mais do que o resultado aritmético. Onde a união comunitária da política faça a força do e pluribus unum, gerando uma mais valia de sonho, de imaginação, de energia.

Em suma, precisamos de política-Política, pela reinvenção dos laços comunitários de uma pilotagem do futuro, capaz de refazer o software das pilotagens automáticas que os tecnocratas e pequenos e médios intelectuais costumam importar através da tradução em calão de muitas fotocópias pirateadas a partir de manuais de programação estranhos à nossa índole, à nossa maneira de estar no mundo, à nossa realidade.

Para tanto, importa distinguir o Estado-Aparelho-de-Poder, o principado, do Estado-Comunidade, a res publica, a fim de se declarar que não pode haver democracia se aquele não resultar deste. O Estado-Aparelho em democracia tem de ser o representante do Estado-Comunidade, o soberano não poder ser algo que paire sobre uma unidimensionalidade de súbditos. Em democracia, a soberania resulta da cidadania, o Estado-Aparelho tem de potenciar-se no Estado-Comunidade.

Logo, tanto tem de haver integração da sociedade no Estado como uma resposta (output) do Estado às exigências e aos apoios (input) da sociedade. Porque se o principado não for mero instrumento da res publica, a comunidade tem de revoltar-se contra o poder estabelecido e expulsar o usurpador, se possível, através dos meios legais disponíveis.

Acontece que a democracia constitui apenas um ideal, um sentido regulativo, da mesma natureza que a exigência do Estado de Direito Democrático, aquele que proclama que o fundamento e os limites do poder passam pelo direito e por aquela forma que é irmã gémea da liberdade e inimiga do arbítrio.

Já não é lei aquilo que o príncipe diz e o príncipe está submetido à própria lei que edita.

Na prática, porém, a teoria é outra, porque qualquer democracia, marcada que está pela plenitude da procura da perfeição, tem de ser instrumento dos homens imperfeitos que somos, e das inevitáveis instituições imperfeitas que constituímos.

Qualquer democracia, no plano das realidades, assume-se como uma poliarquia, como um sistema de competição pluralista e como uma sociedade aberta. Democracia para o país legal e para a cidade dos deuses e dos super-homens. Poliarquia para o país das realidades e para a cidade terrena dos homens concretos! E é dessa mistura entre o céu dos princípios e o enlameado, ou empoeirado, do caminho pisado que, afinal, nos vamos fazendo.

Robert Dahl em A Preface to Democratic Theory, de 1956, considerava já que a vida política norte-americana se caracterizava por uma pluralidade de centros de decisão autónomos e que nenhuma elite ou classe dirigente reinaria sobre este modelo poliárquico caracterizado por um profundo pluralismo social e por uma larga diversidade de organizações sociais com um largo espaço de autonomia de cada uma relativamente à outra. Uma poliarquia que tornaria necessários tanto o compromisso como a conciliação, pelo que as decisões resultariam de intermináveis negociações (bargaining) que oporiam os vários grupos concorrentes. E seria desta livre competição entre grupos rivais que resultaria um equilíbrio espontâneo, equilíbrio que seria tanto mais estável quanto mais a sociedade fosse diversificada.

O mesmo Dahl em Who Governs? Democracy and Power in an American City, de 1961, veio depois considerar, no case study sobre a velha oligarquia de New Haven, que os recursos políticos estavam concentrados e eram marcados pelo seu carácter de desigualdade cumulativa: quando um homem era privilegiado relativamente ao seu próximo num determinado recurso, por exemplo o dinheiro, também o era noutros domínios: o estatuto social, a legitimidade, o poder legítimo, a autoridade sobre as instituições religiosas e escolares, a instrução, a função pública.

Contudo, com o advento da sociedade industrial teria surgido uma dispersão desses recursos: no actual sistema político, as desigualdades políticas permanecem mas tendem a tornar-se não cumulativas. Tendem a tornar-se um sistema de desigualdades dispersas.

Dahl considera, assim, que os recursos políticos são diversos e ainda que desigualmente repartidos já não são objecto de uma posse cumulativa. Além disso, em vez de estarem concentrados num só grupo, os elementos do poder estão todos eles fragmentados. Acresce que os detentores destes recursos já não se aliariam para a constituição de uma oligarquia.

O que Dahl dizia da anterior sociedade norte-americana pode valer prospectivamente para a actual realidade portuguesa que, com a importação da sociedade aberta, vai vivendo a chegada da nova circulação social, agora que o plano das estradas de Fontes Pereira de Melo e Duarte Pacheco se vai concretizando.

Nestes termos, Dahl, um dos novos teóricos da democracia, desenvolve a respectiva tese pluralista, segundo a qual há um grande número de grupos que participam no jogo político, cada um deles procurando, por si mesmo, uma determinada vantagem. E o governo seria o ponto de encontro da pressão desses grupos, seria a resultante de uma espécie de paralelograma de forças.

Ao governo caberia, assim, conduzir uma política que reflectisse os factores comuns às reclamações dos diversos grupos, pelo que a direcção da vida pública teria de ser partilhada entre um grande número de grupos. Grupos todos eles rivais, tentando cada um, em detrimento dos outros, exercer uma influência mais importante sobre a sociedade.

Quando muito, poderia haver uma elite relativamente unificada, dispondo de um poder de direcção estratégica. Surgiriam, assim, elites diferenciadas, cada uma delas com o seu domínio próprio: governo, administração, negócios, forças armadas. Por exemplo, a elite política seria distinta de outras elites e mesmo no seio dela dar-se-ia um encontro de várias espécies de elites. A elite influente em matéria de defesa, por exemplo, seria diferente da elite dominante em matéria de saúde. Logo, as boas democracias seriam aquelas em que as decisões políticas fossem influenciadas por um certo número de elites competitivas.

Diremos, como o nosso Raul Proença que toda a igualdade é ilusória se desconhece as diferenças individuais e, sob o pretexto de se realizar, não dá a todos o igual direito de desenvolver a própria personalidade Que a democracia não tende... à diminuição dos escóis, das aristocracias, mas, antes pelo contrário, à substituição duma falsa aristocracia preestabelecida por uma verdadeira aristocracia natural. Que a democracia reconhece as diferenças de capacidade; mais ainda: é o único regime que as pretende reconhecer em toda a sua latitude, pois se limita a sustentar que todas as diferenças sociais que não sejam baseadas em diferenças de capacidade são atentatórias da justiça e dos interesses colectivos. Pretende, pois, substituir a um regime de desigualdades exteriores e fictícias, baseadas nos acasos da herança ou da fortuna, um regime de desigualdades naturais em que a cada um seja dado o lugar que lhe compete pelo seu esforço e pelas suas aptidões.

Tentando, agora, pensar nas circunstâncias portuguesas, diremos que pode estar em causa a viabilidade do modelo português de Estado.

Sofre, com efeito, o Estado que os portugueses têm vindo a instituir e a refundar, de alguns desafios existenciais que constituem o cerne da presente crise.

Começa por estar em crise o primórdio de qualquer comunidade política: o Estado Segurança, dado que volta a pôr-se em causa o monopólio da força física legítima tanto no plano da segurança interna, como no plano da própria segurança externa.

A força legítima ameaça desintegrar-se pelos sintomas de regresso à vingança privada, nomeadamente através do apelo que muitos fazem a agências privadas de segurança que, assim, negam a essência do aqui d'el rei, como aparecia na célebre lei de D. Duarte que acabou com o feudalismo em Portugal e lançou as bases da predominância do direito sobre o arbítrio do Machtstaat, mesmo que vestido das peles de cordeiro de uma higiénica companhia de seguros funcionando a cunhas.

Segue-se a crise do Estado-Administração da Justiça ou do Estado Justiceiro, da confiança dos povos nos seus juízes e nos seus procuradores, com a ameaça de esporádicas emanações da lei de Lynch quando não pelo desespero de certos mini-pogroms contra os pigmentarmente diferentes, com que se deleita o falso nacionalismo zoológico.

O que tem levado alguns, marcados pelo sombrio de tal horizonte de medo, a propor que eliminemos a plurissecularidade consequente do nosso humanitarismo penal, quando o caminho é apenas darmos meios fácticos ao humanitarismo e não invertermos os valores de que nos orgulhamos.

Mas o que também não nos deve fazer esquecer que muitos erros temos cometido, com o legalismo, a chicana processual e a falta de sentido de missão de alguns servidores da Justiça, tentados pelo sentido de casta dos corpos especiais e pelo vedetismo de certa espectacularidade. Ai de nós, se enveredarmos pelo mediático de uma qualquer tele-justiça! Aí de nós, se o terceiro poder entrar em conúbio com o chamado quarto poder! Porque então, só daí sairemos com juízes eleitos ou com juízes sorteados...

Vem, depois, a crise do Estado Imposto. Porque, muitas vezes, nos esquecemos que a história da democracia é a história do imposto, dessa longa resistência dos povos no sentido da necessidade do consentimento para a tributação, coisa que constituiu sempre o cerne das Magna Charta e que praticamos desde que instituímos o parlamento português em 1253.

O que está em causa é simplesmente a evasão fiscal, um problema mais moral do que fiscalista, dado que, neste momento, continua a pagar o justo pelo pecador. O que menos tem em benefício da petulância do prevaricador. Porque, não havendo moralidade, deixa de haver consciência comunitária de punição e sentido contratual de contribuinte. Quando é impossível o aumento da nossa carga fiscal e não parece curial deixarmos de honrar os compromissos para com os milhões de pensionistas.

Finalmente, é a crise do Estado Burocracia, esse instrumento vital do Estado Racional Normativo, dado que, de tanta reforma administrativa e de tanta modernização administrativa se perdeu o próprio sentido dos gestos e se desprestigiou o funcionário. Aquele que é um servus ministerialis, o escravo de uma função, marcada pelo direito à carreira e paga pelo vencimento, contra o clientelismo e o emolumento.

Uma crise que determinados erros de falta de pensamento têm agravado, dado que continua a faltar uma escola de quadros e uma coordenação de policies que nos liberte de certo orçamentalismo casuístico, para não falarmos de alguma tentação dos anos oitenta que fala em privatizar os métodos de gestão pública, na mesma altura em que os grandes holdings privados tratam de copiar modelos da estratégia dos governments.

Todas estas crises sitiam a democracia e o Estado de Direito, onde o poder político, tanto o do poder governante como o do poder representativo, deve preponderar sobre os grupos e sobre as facções.

O poder político não é uma coisa, é uma relação, um processo de condução da network structure, de comando da rede de micropoderes, um sistema de sistemas e subsistemas, onde até aquilo que habitualmente se designa como classe política não passa hoje de um mero subsistema de um processo global.

É evidente que a governação, isto é, a pilotagem do futuro, numa sociedade aberta e pluralista, constitui apenas um modo dinâmico de gestão de crises, dado que o governo pelo consentimento impõe a emergência de forças vivas, onde a articulação de interesses e a emergência de pressões constitui o normal anormal da competição.

Mas reconhecer o pluralismo não pode significar cedência ao neocorporatism. Do mesmo modo, como aceitar as facções, os partidos e a competição para a conquista eleitoral do poder não implica necessariamente a partidocracia.

As democracias e as sociedades abertas estão cercadas pela corrupção em sentido amplo, isto é, pelos inúmeros processos de compra do poder. Tal como as burocracias estão minadas pelo clientelismo, pelo nepotismo, pela pantouflage e pelo negocismo.

Por isso é que as democracias têm de defender-se, em primeiro lugar, contra as degenerescências típicas dos próprios fenómenos democráticos, garantindo-se a democracia com ainda mais democracia, isto é, sem cedências ao despotismo dos césares, das multidões e dos próprios césares de multidões, onde a demagogia, aliada a poderes pessoais, tende inevitavelmente para a usurpação e a tirania doces, isto é, para a negação do governo pelo consentimento.

Do mesmo modo, não há forma de superar-se a crise da sociedade aberta, senão com mais sociedade aberta, incluindo a via do mercado, da internacionalização da economia e do reconhecimento da actual internacionalização da própria sociedade civil. Qualquer regresso ao Estado Gestor, ao Estado Confiscador ou ao Estado Planeador seria desgastarmos o político em funções para as quais ele não está vocacionado, quando não persistirmos no latrocínio.

O que não deve significar cedência àquilo que o Professor Adriano Moreira qualificou como teologia do mercado e que é praticado por certos missionários ultraliberais, mas antes o humilde reconhecimento de que os problemas económicos só se resolvem com medidas económicas, mas não apenas com medidas económicas. Porque o mercado não é o Estado, porque a oikos não é a polis.

O nível da política é o que está acima do doméstico, o decisor acima das partes, onde não há um dono mas um todo de cidadãos que não são os escravos, os dependentes, os clientes ou os súbditos, mas aqueles que dão o consentimento na decisão, participando na mesma, mesmo que federativamente, ou escolhendo os representantes que, em nosso nome e para os nossos interesses, a proferem.

Mais política é mais Estado no plano qualitativo, para que também possa haver mais Sociedade. Precisamos de mais estratégia de Estado, de mais pensamento de Estado, de mais política internacional, de mais segurança, de mais justiça, de que todos paguem o imposto, de mais imparcialidade da administração, para que haja mais mercado, mais produção, mais solidariedade, mais bem-estar, mais espaço para a intimidade da família e da pessoa, em suma, para a realização do direito dos direitos, que é o direito à felicidade.

Só que mais Estado nunca poderá ser o menos-que-Estado de um Estado-Empresário, de um Estado interventor nos preços e na gestão, de um Estado quase merceeiro, policiesco, vigilante ou caceteiro.

Apesar de tudo, a democracia e o Estado de Direito, com partidos e poliarquia, são péssimos regimes políticos mas os menos péssimos de todos. Bem menos péssimos que qualquer tentação de vanguardismo, elitista ou autoritarista, onde acabam sempre por preponderar os sargentos e os censores, mesmo que com brandura de costumes. Bem menos péssimos do que aqueles regimes que, em nome da ideologia, decretam a verdade, esquecendo que o bem tem sempre um bocado de mal e o mal, um pedaço de bem.

Sempre é melhor dialogar com o adversário, pôr o poder a travar o poder, e evitar que ele se torne ab-solto, absoluto, porque se o poder enlouquece ou corrompe, o poder em soltura, corrompe absolutamente ou enlouquece absolutamente, mesmo que apenas se manifeste pela arrogância.

Acontece apenas que a principal das forças vivas da actualidade é o povo português, isto é, a mistura de povo com uma certa ideia de Portugal, onde o valor Portugal, aliás, a primeira palavra da nossa Constituição, é que dá sentido ao povo, mas onde o adjectivo português só existe em função do substantivo homem concreto. Onde a essência só se realiza através da existência que, afinal, constitui a única realidade substancial

É em nome da fidelidade a Portugal e à solidariedade entre todos os portugueses que devemos assumir a resistência do nosso libertacionismo, compatibilizando-o com o grande jogo do europeísmo e do globalismo.

É um novo modelo de Estado e de Sociedade que temos de reinventar, restabelecendo a Segurança do direito contra a força, impulsionando a Justiça contra o arbítrio, dando força à Justiça e impondo justiça à Força.

Um novo modelo que restaure a legitimidade do imposto, de novo entendido como contribuição, para que a justiça distributiva e a justiça social não percam o sentido unitário e compensem as falhas da justiça comutativa. Onde seja possível realizar o de cada um segundo as suas possibilidades, para que possa praticar-se o a cada um segundo as suas necessidades, através do alterum non laedere, do suum cuique tribuere e do honeste vivere, os fundamentos perenes da nossa civilização que permitiram a separação de poderes, a instituição da representação e a universalização dos direitos do homem.

Um novo modelo que faça renascer a confiança do cidadão na sua Administração, que deve voltar a ser posta ao serviço do todo, sem fenómenos de compra do poder, e onde o mais competente da legitimidade racional weberiana, vença os atavismos do fidelismo patrimonialista ou do lealismo carismático. Onde o saber possa, pela igualdade de oportunidades, constituir a principal forma de acesso ao poder, contornando-se os desvios do mandarinato.

Um Estado de liberdades, de grupos e de partidos, onde se vença a demagogia do star system, o neo-patrimonialismo corporativo e os tentáculos da partidocracia.

Só uma grande estratégia pode garantir a continuidade de um Estado feito à imagem e semelhança dos portugueses que somos.

Um Estado sem vãs glórias de mandar que assuma o realismo de apenas ter o tamanho da Sociedade que somos, daquilo que economicamente produzimos ou da ciência que intelectualmente geramos ou aplicamos.

Um Estado que retome as boas máximas do viver com aquilo que temos, para não passarmos pela vergonha do pedinchão, nós que talvez devêssemos continuar a ter a fibra do antes quebrar que torcer.

Um Estado situado na classe média baixa da sociedade das nações, quando os novos predadores da geofinança ameaçam tornar os ricos cada vez mais ricos e os pobres cada vez mais pobres, proletarizando as classes médias dos Estados e das Sociedades, em nome de uma globalista sociedade de casino que denega a solidariedade e a justiça.

Um Estado que não transforme as potencialidades em vulnerabilidades, mas, antes pelo contrário, que assuma o respectivo poder funcional e volva a vulnerabilidades em potencialidades, principalmente no ritmo da balança da Europa.