É à Escola e aos professores que, desde a Antiguidade, muitas sociedades, com destaque para as sociedades ocidentais, têm confiado a educação formal de crianças e jovens.
E porque é que o têm feito? Entendo que há uma razão fundamental que, curiosamente, vejo escapar em muitas discussões actuais sobre a função de tal educação e na qual vislumbro três pólos: o desenvolvimento de certas capacidades cognitivas, afectivas e motoras dos sujeitos; o funcionamento a níveis aceitáveis de comunidades e estados; e a transmissão e ampliação da herança civilizacional.
Na verdade, como humanos, cedo percebemos que a educação formal nos permite vir a desfrutar de capacidades que trazemos em potência ao nascer e que tal se faz com base em conhecimentos acumulados ao longo do tempo, conhecimentos que valorizamos e, nessa medida, transformamos em memória funcional.
Assim, transmitir conhecimentos, técnicas, valores, instruir, preparar para a cidadania, para a consciência do mundo, para o progresso, para o bem, para o belo, para a liberdade, até para a felicidade, são alguns dos grandes propósitos que têm conduzido o sonho e a acção educativa.
É certo que há muitos momentos em que a tais propósitos têm dado lugar aos seus contrários: regimes aberta ou disfarçadamente totalitários encarregam-se disso nas suas primeiras medidas.
Porém, desde os esboços de democracia grega até ao presente, temos conseguido fazer face a esses regimes bem como a crises de toda a ordem. Por isso, a escola e os ideais que persegue, ainda que com inúmeras variantes, sobreviveram, o mesmo se pode dizer do ensino, a profissão que os concretiza. Mas isto não constitui qualquer garantia de que assim continue a acontecer.
Efectivamente, a educação é uma tarefa interminável, que requer, a cada momento, reconstituições com cada sujeito e para cada sujeito, de modo que este se aproprie de uma parte do humano, se conduza por ele e, eventualmente, o transmita a outros. Percebe-se que qualquer falha menor nessa tarefa, acarreta prejuízos incalculáveis: debilita-se a vocação e o entendimento que temos de “pessoa”; perece o passado e compromete-se o futuro.
Pela permanência e urgência de tal tarefa, muitos assemelham-na à de Sísifo, mas também pelo esforço que é preciso despender e pela vontade de a empreender, tendo por certo que nunca ela se concretiza por inteiro, que é sempre preciso recomeçar do nada ou de próximo do nada…
Esta é a consciência que acompanha os verdadeiros professores, aqueles que apreenderam o sentido de educar e que sabem que está nas suas mãos e só nas suas mãos cumprir tal desígnio.
São estes professores do Ensino Básico, Secundário e Superior, jovens e experientes, que eu vejo todos os dias desistir. Nas suas palavras, nem sempre explícitas, frequentemente sussurradas, percebo:
- Fadiga extrema, pelas inúmeras tarefas burocráticas que têm de concretizar sem falta ou falha e em tempo limitado mas nas quais não percebem qualquer sentido a não ser impedi-los de estudar, preparar aulas, dar atenção aos seus alunos.
- Desorientação absoluta, face aos discursos da tutela e de especialistas em educação, a que são continuamente expostos. Discursos que são, as mais das vezes, incompreensíveis e contraditórios, mas onde, no entanto, se vêem desapossados da sua função de ensinar e reduzidos a “meros” orientadores, acompanhantes das aprendizagens.
- Desencanto inquieto, por terem tentado tudo o que estava ao seu alcance para compreenderem esses discursos e, quando perceberam o seu alcance lesivo, para o filtrarem de modo que nas suas sala de aula causassem o menor impacto possível. Porém, não obstante os seus esforços, não podem negar que eles invadem, de modo incontrolável, as suas práticas, que sabem tornar-se erradas por não conduzirem a aprendizagens válidas.
- Apresentação insustentável de uma imagem socialmente favorável, pela necessidade de reproduzirem esses mesmos discursos, sob pena de serem mal interpretados, avaliados, julgados pelos seus pares ou outros. Assim, escondem a sua voz, sabendo que estão a atraiçoá-la e a atraiçoar os que dela podiam beneficiar.
Sublinhei as palavras extrema, absoluta e inquieto e insustentável para que se perceba o estado limite a que os bons professores, os professores que se interessam, chegaram: sabem bem que não fazem o que devem, e que é ensinar, ou seja, sabem bem que muito dificilmente conseguem levar o conhecimento que importa aos alunos, de modo que estes o amem e desenvolvam a sua inteligência. Em alguns percebo que esse estado é próximo do vegetativo, arrastam-se e cumprem, numa tentativa de sobrevivência pessoal, até terem coragem de mudar de profissão ou de pedir a reforma antecipada.
Infelizmente, a investigação que se faz na área pedagógica corrobora o que acabo de afirmar: o mal-estar dos professores vai além da mera insatisfação, torna-se num abandono incontornável ainda que indesejado.
Termino este texto com as palavras de Eric Weil (1904-1977), na esperança de que elas sirvam para despertar a necessidade de se repensar a importância e urgência da educação para todos neste início século.
E porque é que o têm feito? Entendo que há uma razão fundamental que, curiosamente, vejo escapar em muitas discussões actuais sobre a função de tal educação e na qual vislumbro três pólos: o desenvolvimento de certas capacidades cognitivas, afectivas e motoras dos sujeitos; o funcionamento a níveis aceitáveis de comunidades e estados; e a transmissão e ampliação da herança civilizacional.
Na verdade, como humanos, cedo percebemos que a educação formal nos permite vir a desfrutar de capacidades que trazemos em potência ao nascer e que tal se faz com base em conhecimentos acumulados ao longo do tempo, conhecimentos que valorizamos e, nessa medida, transformamos em memória funcional.
Assim, transmitir conhecimentos, técnicas, valores, instruir, preparar para a cidadania, para a consciência do mundo, para o progresso, para o bem, para o belo, para a liberdade, até para a felicidade, são alguns dos grandes propósitos que têm conduzido o sonho e a acção educativa.
É certo que há muitos momentos em que a tais propósitos têm dado lugar aos seus contrários: regimes aberta ou disfarçadamente totalitários encarregam-se disso nas suas primeiras medidas.
Porém, desde os esboços de democracia grega até ao presente, temos conseguido fazer face a esses regimes bem como a crises de toda a ordem. Por isso, a escola e os ideais que persegue, ainda que com inúmeras variantes, sobreviveram, o mesmo se pode dizer do ensino, a profissão que os concretiza. Mas isto não constitui qualquer garantia de que assim continue a acontecer.
Efectivamente, a educação é uma tarefa interminável, que requer, a cada momento, reconstituições com cada sujeito e para cada sujeito, de modo que este se aproprie de uma parte do humano, se conduza por ele e, eventualmente, o transmita a outros. Percebe-se que qualquer falha menor nessa tarefa, acarreta prejuízos incalculáveis: debilita-se a vocação e o entendimento que temos de “pessoa”; perece o passado e compromete-se o futuro.
Pela permanência e urgência de tal tarefa, muitos assemelham-na à de Sísifo, mas também pelo esforço que é preciso despender e pela vontade de a empreender, tendo por certo que nunca ela se concretiza por inteiro, que é sempre preciso recomeçar do nada ou de próximo do nada…
Esta é a consciência que acompanha os verdadeiros professores, aqueles que apreenderam o sentido de educar e que sabem que está nas suas mãos e só nas suas mãos cumprir tal desígnio.
São estes professores do Ensino Básico, Secundário e Superior, jovens e experientes, que eu vejo todos os dias desistir. Nas suas palavras, nem sempre explícitas, frequentemente sussurradas, percebo:
- Fadiga extrema, pelas inúmeras tarefas burocráticas que têm de concretizar sem falta ou falha e em tempo limitado mas nas quais não percebem qualquer sentido a não ser impedi-los de estudar, preparar aulas, dar atenção aos seus alunos.
- Desorientação absoluta, face aos discursos da tutela e de especialistas em educação, a que são continuamente expostos. Discursos que são, as mais das vezes, incompreensíveis e contraditórios, mas onde, no entanto, se vêem desapossados da sua função de ensinar e reduzidos a “meros” orientadores, acompanhantes das aprendizagens.
- Desencanto inquieto, por terem tentado tudo o que estava ao seu alcance para compreenderem esses discursos e, quando perceberam o seu alcance lesivo, para o filtrarem de modo que nas suas sala de aula causassem o menor impacto possível. Porém, não obstante os seus esforços, não podem negar que eles invadem, de modo incontrolável, as suas práticas, que sabem tornar-se erradas por não conduzirem a aprendizagens válidas.
- Apresentação insustentável de uma imagem socialmente favorável, pela necessidade de reproduzirem esses mesmos discursos, sob pena de serem mal interpretados, avaliados, julgados pelos seus pares ou outros. Assim, escondem a sua voz, sabendo que estão a atraiçoá-la e a atraiçoar os que dela podiam beneficiar.
Sublinhei as palavras extrema, absoluta e inquieto e insustentável para que se perceba o estado limite a que os bons professores, os professores que se interessam, chegaram: sabem bem que não fazem o que devem, e que é ensinar, ou seja, sabem bem que muito dificilmente conseguem levar o conhecimento que importa aos alunos, de modo que estes o amem e desenvolvam a sua inteligência. Em alguns percebo que esse estado é próximo do vegetativo, arrastam-se e cumprem, numa tentativa de sobrevivência pessoal, até terem coragem de mudar de profissão ou de pedir a reforma antecipada.
Infelizmente, a investigação que se faz na área pedagógica corrobora o que acabo de afirmar: o mal-estar dos professores vai além da mera insatisfação, torna-se num abandono incontornável ainda que indesejado.
Termino este texto com as palavras de Eric Weil (1904-1977), na esperança de que elas sirvam para despertar a necessidade de se repensar a importância e urgência da educação para todos neste início século.
"O perigo futuro poderá traduzir-se numa ameaça muito maior: o perigo de uma humanidade liberta da necessidade e do constrangimento exterior mas impreparada para dar conteúdo à sua liberdade. Neste sentido, não seria exagerado afirmar que não existe nenhum problema mais importante, mais urgente, que o da educação. E os nossos sucessores podem vir a ser incapazes de o resolver se demorarmos demasiado tempo e se, desde já, não reflectirmos suficientemente sobre esse problema. Podem mesmo vir a ser incapazes de ver o problema e de tomar consciência daquilo que já vem mal de trás - exactamente da mesma maneira que a filosofia grega, nos seus últimos momentos, deixou de procurar uma resposta válida para todos os homens livres e para toda a comunidade de homens livres e apenas procurou encontrar consolação para os raros indivíduos que continuavam a pensar que tudo tinha acabado mal. Ela renunciou assim a perceber que era possível, ou teria sido possível, encontrar um remédio.”
Referência bibliográfica: Weil, E. (s.d). A educação enquanto problema do nosso tempo. Pombo, O. (2000) Quatro textos excêntricos. Lisboa: Relógio D´Água, páginas 70-71.
Imagem: Sísifo, por Max Klinger (1914).
Imagem: Sísifo, por Max Klinger (1914).