O incêndio em Pedrógão provocou pelo menos 61 mortos e 62 feridos, alguns em estado grave ADRIANO MIRANDA |
O que é que falhou neste sábado? Tudo, tal como falha há décadas
Só não se sabia onde o raio ia cair, mas
muitos avisaram que onde caísse seria uma desgraça. Ninguém esperava que
tomasse estas proporções, mas a ausência de aposta na floresta conduziu a este
barril de pólvora. Como já aconteceu antes e irá voltar a acontecer. Será que é
desta que tudo muda?
18 de Junho de 2017, 21:08
Não há rigorosamente nada de novo a dizer. Já tudo foi estudado,
explicado e escrito na última década e meia. Houve comissões para todos os
gostos e feitios. E foi feito muito trabalho sério. Faltou tudo o resto. Faltou
pôr a tratar de incêndios florestais quem percebe de floresta. Faltou integrar
prevenção e combate. Faltou ordenamento. Faltou pensar no longo prazo. E
adiou-se o mesmo de sempre: fazer da floresta uma prioridade, fazer de um terço
do território nacional uma prioridade.
Houve,
ninguém nega, uma conjugação extraordinária de factores adversos, como já tinha
acontecido em 2003: ao ar seco e temperaturas altas juntaram-se as trovoadas
secas e o vento forte numa tragédia de dimensões inéditas no país que provocou
pelo menos 61 mortos e 62 feridos, alguns em estado grave, no concelho de
Pedrógão Grande. Estes, por sua vez, podem ter provocado a queda de linhas de
alta tensão, gerando mais focos de ignição, acrescenta Paulo Fernandes,
investigador da Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro. Mas isto aconteceu
em vários pontos do território — “houve uma quantidade anormal de fogos no
Alentejo”, adianta o investigador — sem as mesmas consequências. Qual foi a
diferença? O tremendo barril de pólvora que é o Pinhal Interior (que já é uma
mistura de duas monoculturas: pinheiros e eucaliptos). Que se junta a muitos
outros país fora. E é neste ponto que Portugal insiste em falhar.
“Todos
pensam que quem percebe de cozinha são os gordos e não os cozinheiros. Com os
incêndios florestais passa-se o mesmo”, resume Henrique Pereira dos Santos,
arquitecto paisagista. Nesta guerra — pois não há outro nome a dar, uma guerra
em que Portugal se envolve ano após ano e perde sempre —, o conhecimento
florestal é o soldado raso no teatro de operações.
A
estratégia em vigor, depois de anos de avanços e ainda mais recuos, assenta em
três pilares — os três pilares rachados, como lhes chama Paulo Fernandes: a
vigilância e detecção, entregue à GNR; a prevenção, da responsabilidade do
Instituto da Conservação da Natureza; e o combate, feito pela Autoridade
Nacional de Protecção Civil. Cada vez que alguma coisa corre mal, um dos pilares
atira as culpas para o outro. Pelo caminho fica a coordenação desta gente toda,
aponta o engenheiro florestal.
“Não
há qualquer integração entre combate e prevenção, tem de se criar um corpo
profissional, que esteja permanentemente envolvido na prevenção e no combate”,
defende Henrique Pereira dos Santos. Só assim, aqueles que no Inverno abriram
caminhos, aceiros e desmataram conheceriam o terreno para no Verão enfrentar as
chamas, sabendo quais os locais onde estas poderiam ser melhor combatidas e o fogo
estancar. Assim como teriam conhecimentos suficientes para saber por onde o
incêndio tenderia a evoluir, antecipando-o, em vez de passar a vida a correr
atrás dele, como agora acontece. Foi esta mesma estrutura que aqueles que
mais sabem de floresta em Portugal propuseram há dez anos, entre muitas outras
medidas que poderiam ter começado a permitir que o país se preparasse para
finalmente começar a vencer algumas batalhas. Por ser “demasiado ambiciosa”,
esta proposta de um Plano de Defesa da Floresta contra Incêndios (PNDFCI) foi
reduzida à sua ínfima expressão e
a prioridade foi para os do costume: o combate. Uma decisão que Ascenso Simões,
que na altura era secretário de Estado no Ministério da Administração Interna
liderado por António Costa, actual primeiro-ministro, assumiu no rescaldo dos
incêndios do ano passado como um “erro grave”. Ou seja, o conhecimento técnico tem sido
paulatinamente destruído — ou ignorado — em Portugal. Os serviços florestais
são uma pálida imagem do que foram, os guardas florestais foram integrados na
GNR e os conselhos dos silvicultores são esquecidos assim que o Outono ameniza
o clima.
Avisos com 50 anos
Não foi apenas após os terríveis
incêndios de 2003 e 2005 que se descobriu que Portugal era particularmente
vulnerável aos incêndios, não só pelo seu clima mediterrânico como devido às
alterações climáticas. Os avisos começaram em 1965, quando os engenheiros
florestais Moreira da Silva, Vasco Quintanilha e Ernâni José da Silva
elaboraram o relatório Princípios
Básicos de Luta contra Incêndios na Floresta Particular Portuguesa, onde constava tudo o que agora se
discute como se fosse novidade: o diagnóstico — as monoculturas e
desertificação rural conduziram ao desastre — e a solução — a redefinição
da gestão florestal privada no minifúndio através da criação de polígonos
florestais com dimensão para potenciar a sua correcta gestão (as actuais Zonas
de Intervenção Florestal), a importância do planeamento florestal e a adopção
de sistemas de prevenção e combate assentes na profissionalização dos seus
agentes.
São pelo menos 50 anos a dizer o mesmo
para orelhas moucas. “Estamos sempre focados no imediato, não se equilibra o
orçamento entre a prevenção e o combate, não se pensa na gestão do território,
continuamos focados na protecção civil quando este é um problema de geografia
física e humana já com um século e meio e que demorará décadas a resolver”, diz
José Miguel Cardoso Pereira, do Instituto Superior de Agronomia e que liderou a
equipa que propôs o tal PNDFCI “demasiado ambicioso”.
E agora, por onde (re)começamos? “Pelo
interface entre os espaços rurais e urbanos, reduzindo a carga de vegetação e,
por consequência, o risco, libertando assim meios” que, em vez de estarem a
defender as casas, deixando as chamas correrem livres nos matos e florestas,
estão concentrados na luta contra o incêndio, acrescenta Cardoso Pereira. E,
claro, “criar uma estrutura integrada mais especializada em meio florestal”.
No mesmo sentido vai Luciano Lourenço,
director do núcleo de investigação de incêndios florestais da Universidade de
Coimbra, que lamenta que muitas das medidas de prevenção que foram previstas no
PNDFCI nunca tenham saído do papel. “Há anos que se fala na necessidade de
criar faixas de segurança em torno das habitações e das unidades industriais.
Bastava que essa medida tivesse sido implementada para que se tivessem evitado
algumas destas mortes”, aponta. Para o investigador, além de poupar vidas,
estas faixas de segurança fariam com que “deixasse de ser prioritário colocar
os bombeiros nas aldeias — porque elas estariam protegidas —, permitindo que se
concentrassem no combate ao incêndio”.
Todo o sistema de prevenção e combate a
incêndios precisa de ser reformado, reforça Paulo Fernandes. “Esta
originalidade portuguesa de ter fases Alfa e Charlie não
faz sentido hoje. Um sistema moderno não pode estar dependente do calendário,
tem de ter flexibilidade para responder sempre que necessário, até por causa
das alterações climáticas.”
Numa altura em que o Dispositivo Especial
de Combate aos Incêndios Florestais para 2017 está ainda na fase Bravo,
e sendo que a fase Charlie, que vai ter os meios
de combate na sua capacidade máxima, começa só no dia 1 de Julho, o
investigador Xavier Viegas concorda com a necessidade de uma maior
flexibilidade do dispositivo. “O problema é que essa flexibilidade não é nada
fácil e levaria à introdução de cláusulas nos contratos que seriam impeditivas
do ponto de vista económico ou prático”, ressalva, porém, o professor na
Universidade de Coimbra, com anos de investigação na área dos incêndios
florestais.
Portanto, o caminho mais seguro e com
mais resultados continua a ser o da prevenção. Como? “É preciso pegar nas
pessoas válidas que vivem nestes meios rurais e dar-lhes capacidade de se
organizarem e de se auto-protegerem num cenário de incêndio, evitando assim que
fiquem à margem do processo como hoje em dia”, sugere Xavier Viegas, para
defender que cada núcleo habitacional deste tipo deveria, por outro lado, ter
“espaços de refúgio seguros para onde as pessoas pudessem encaminhar-se sem
terem que se fazer à estrada para fugir ao fogo”.
Por outro lado, o Fundo Florestal
Permanente deveria ser totalmente canalizado para as associações de produtores,
que asseguram que a floresta é gerida, defende Américo Mendes, professor na Universidade
Católica Portuguesa (Porto) e presidente da Associação Florestal do Vale do
Sousa. Para envolver cada vez mais os proprietários, haveria também de aumentar
o interesse económico de uma floresta diversa, que deixasse de estar refém das
monoculturas que lhe dão um rendimento rápido: o pagamento dos serviços
prestados ao ecossistema.
Tudo, mas mesmo tudo isto e muito mais, já foi dito e
repetido. Por isso, Paulo Fernandes pede que se retirem ilações
desta tragédia. “Acho inconcebível que responsáveis do Governo e até o
Presidente da República comecem logo a declarar à queima-roupa que tudo correu
muito bem” porque isto, acredita, contribui para “a
desresponsabilização”.