A dívida, ao tornar-se perpétua constitui uma renda que alimenta o parasitismo capitalista. Quer seja aquela que subscrevemos, quer seja aquela que a classe política nos endossa com o rótulo de dívida pública, por encomenda do sistema financeiro.
Sumário
1 - Da moeda até à dívida e o papel do Estado
2 - Como se constrói a dívida e a sua mansa aceitação
3 - O capitalismo existe, convém não esquecer
4 – O papel dos Estados na engorda do sistema financeiro
1 - Da moeda até à dívida e o papel do Estado
Houve uma longa época em que as dívidas faziam parte das naturais trocas
entre gente que procurava satisfazer as suas necessidades, numa base de
interações entre membros de uma mesma comunidade e em que a usura não fazia
parte das mentalidades.
As dívidas faziam parte dos desequilíbrios naturais dentro das comunidades e
não como elementos de diferenciação e autónomos, de domínio de credores sobre
devedores; créditos como ativos e débitos, como passivos.
O surgimento do dinheiro, materializado em sal ou conchas, focou-se depois
nos metais preciosos – ouro, sobretudo – que, dada a sua inalterabilidade,
correspondia à procura de bens estáveis e aceites, de fácil transporte para
troca com outros bens. A própria materialidade do dinheiro impedia a sua
movimentação num comércio mais alargado e a segurança dos seus detentores face
a roubos; era vulgar os reis nas suas deslocações guerreiras transportarem
arcas com o tesouro real e, em caso de dificuldades financeiras procederem à
desvalorização da moeda substituindo parte do ouro por prata ou cobre.
Na China, antes do século X e, no século XIII, na Itália, onde a densidade
das relações comerciais longínquas era grande, generalizou-se a utilização de
documentos que certificavam o depósito num banco de certa quantidade de ouro e
que garantia o levantamento noutro banco por parte do portador, sendo portanto
títulos transmissíveis. Passado o período de abundância de ouro, trazido do
golfo da Guiné pelos portugueses e saqueado pelos espanhóis no México e com o
enorme desenvolvimento do comércio longínquo inerente à expansão colonial
europeia, chegou-se à conclusão que não haveria ouro armazenado nos bancos que
correspondesse ao valor das mercadorias transacionadas o que fragilizava a
confiança nos bancos por parte dos depositantes.
Os Estados, no século XIX, para dotar os sistemas monetários da confiança
generalizada por parte das populações e dos negócios, impuseram o monopólio da
emissão de moeda-papel - as notas que se usam hoje - em bancos emissores, sem
contudo poderem assegurar a convertibilidade dessas notas em ouro. Isto é, ao
emitirem notas sem outra contrapartida que não a confiança por parte da
população, os bancos emissores e os Estados assumiam potencialmente uma dívida que
jamais poderiam pagar; e para que ninguém pudesse colocar em causa a confiança
no banco emissor/Estado, exigindo a conversão de notas em ouro, os Estados
vieram a decretar a inconvertibilidade dessas notas em ouro, a assunção de
devedores sem capacidade de pagar as suas dívidas, seja em ouro, seja no que
fosse.
A Inglaterra cancelou a convertibilidade da libra em ouro em 1931 pois o
ouro estava em emigração acelerada para os EUA, onde em 1934, todos os bancos
foram obrigados a depositar o seu ouro no Tesouro em troca de certificados. Em
1944, em Bretton Woods, todas as moedas se referenciaram ao dólar, a única
convertível em ouro, ao preço de $ 35/onça (31,104 grs) referência que foi
alterada por Nixon em 1968 para $42,22/onça, como resposta aos deficits
externos corrosivos dos EUA, à guerra do Vietnam e à compra francesa de ouro
contra a entrega de dólares. Finalmente, em 1971, foi cancelada a
convertibilidade do dólar em ouro, ficando todas as moedas mundiais sem
qualquer referência real que não a confiança das populações na aceitação
generalizada de notas como instrumentos de transação, poupança e especulação.
Até mesmo a ficção de uma relação entre o ouro e o dólar acabou por desaparecer
em 1976, deixando à Reserva Federal a total liberdade de imprimir notas de
banco, sem qualquer valor que não a aceitação generalizada do seu poder
aquisitivo. Isto quer dizer que um banco central ao emitir moeda, emite um
título de dívida que cede ao sistema bancário, para colocação na sociedade, no
âmbito deste mecanismo;
a) o banco central cria um valor a partir do nada, tendo em conta que se for excessivo no contexto da moeda em circulação, esse valor conduz a inflação e que se for insuficiente promoverá subida das taxas de juro, dificultando negócios. Há que ter em conta o valor da riqueza em circulação, a conjuntura e o ritmo das transações numa sociedade;
b) o banco central cede esse valor a um banco comum que entrega um documento de assunção de dívida, perante o banco central, cedente;
c) o banco comercial vai ceder o valor equivalente a vários clientes no âmbito do que se chama multiplicador do crédito, como adiante se explicará.
a) o banco central cria um valor a partir do nada, tendo em conta que se for excessivo no contexto da moeda em circulação, esse valor conduz a inflação e que se for insuficiente promoverá subida das taxas de juro, dificultando negócios. Há que ter em conta o valor da riqueza em circulação, a conjuntura e o ritmo das transações numa sociedade;
b) o banco central cede esse valor a um banco comum que entrega um documento de assunção de dívida, perante o banco central, cedente;
c) o banco comercial vai ceder o valor equivalente a vários clientes no âmbito do que se chama multiplicador do crédito, como adiante se explicará.
Gera-se assim uma cascata de créditos e de dívidas, sem qualquer ancoragem
em poupança e totalmente dependente da confiança existente nessa emissão
monetária originária. Nessa cascata têm um papel essencial os destinatários
finais, particulares e empresas, que transformam os seus débitos em bens e que
de facto, alicerçam toda a cadeia; na base, está portanto o trabalho, como
único e real criador de valor.
É esse mecanismo artificial e artificioso que está presente no quantitative
easing utilizado por Draghi no BCE; uma
emissão monetária que irá triplicar o balanço do banco central da Zona Euro, de
um (em 2014) para três biliões de euros em 2016, com a particularidade de que
os bancos comerciais para deterem meios financeiros para os seus negócios
entregam, frequentemente como garantia, títulos de dívida pública, financiando
assim indiretamente, os estados emissores daqueles títulos, mormente os da
periferia sul da UE.
Esta política do BCE corresponde a uma bomba de relógio. Primeiro porque
não está a gerar uma inflação desvalorizadora de dívidas, mormente públicas;
depois porque a emissão monetária agrava as dívidas públicas, já por natureza,
financeiramente impagáveis e
insustentáveis do ponto de vista social, em países como Grécia
ou Portugal; e, finalmente, porque essa massa monetária vai inchando a bolha
especulativa dos chamados mercados financeiros, com rebentamento inevitável
faltando saber apenas o momento.
Passemos ao sumário relato de uma curiosidade portuguesa no século XIX.
Em 27/11/1880 a revista inglesa The Economist referia a
instabilidade dos mercados: "Os mercados monetários da Europa estão a
ficar cansados, e não sem razão, da constante solicitação por Portugal de novos
empréstimos" e cinco anos depois, apontava: "No próprio
interesse de Portugal era preferível que as suas facilidades de endividamento
fossem, agora, restringidas". A Comissão Europeia e o Eurogrupo são os
membros mais recentes da mesma linhagem financeira.
Em 1890 sucedeu a falência do Baring Brothers (118 anos depois aconteceu o
mesmo em outro negócio de família, o dos manos Lehman), o principal parceiro do
governo português na City e que para fazer face à situação transferiu £ 1
milhão em ouro do Banco de Portugal para Londres, reduzindo substancialmente as
reservas portuguesas. A crise financeira subsequente junta-se ao Ultimato
inglês ambos a demonstrar o que tem valido a soberania portuguesa, cantada por
nacionalistas e patriotas; a revolta republicana de 31 de janeiro de 1891 foi
um aproveitamento oportuno da situação.
Em plena crise, a The Economist utilizou uma terminologia muito actual na
sua edição de 6/2/1892. "Tem sido evidente de há bastante tempo
que o país (Portugal) estava a viver acima dos seus meios… "É inevitável
uma redução significativa do encargo com a dívida…”. “Os detentores da dívida
portuguesa têm de consentir num abatimento dos seus direitos, por força das circunstâncias".
Como é fácil de ver, a imperial Inglaterra tratava a sua semicolónia
portuguesa com a dignidade adequada; tal como hoje acontece com a oligarquia
bruxelense. Passados tantos anos, as desigualdades entre as várias áreas na
Europa mantêm-se; mas, a admissão de uma anulação de parte substancial da
dívida não está presente nos meios políticos porque acarretaria um encolhimento
da dimensão do sistema financeiro e de alterações profundas no seu funcionamento.
Embora essa anulação seja inevitável e justa, mesmo que silenciada – eppur
si muove.
2 - Como se constrói a dívida e a sua mansa aceitação
Na política portuguesa (e não só) prepondera um marcado conservadorismo
(também) no capítulo da dívida em geral e da pública em particular; e essa
atitude, de mentira, mansidão ou ignorância, configura uma cortina que oculta o
profundo significado da dívida e que se consubstancia sob três formas;
a) a não consideração da dívida – pública ou privada – como um instrumento de captura de povos e de vidas construído pelo capitalismo; isso, nem sequer roça as meninges dos membros da classe política, mormente do segmento que se arroga da defesa do povo trabalhador.
b) são pouco visíveis as opiniões que colocam em causa a ilegitimidade da dívida uma vez que prepondera o orgulho de “não ser caloteiro”, um orgulho em total desarmonia com as práticas de corrupção, vigentes no país europeu ocidental medalhado com o bronze nesse campeonato.
c) a dívida é observada com conformismo, de modo economicista[1], dividindo-se as opiniões na classe política entre um “pagamos obedientemente” e um “pagamos obedientemente mas, agradecemos uma atençãozinha”.
a) a não consideração da dívida – pública ou privada – como um instrumento de captura de povos e de vidas construído pelo capitalismo; isso, nem sequer roça as meninges dos membros da classe política, mormente do segmento que se arroga da defesa do povo trabalhador.
b) são pouco visíveis as opiniões que colocam em causa a ilegitimidade da dívida uma vez que prepondera o orgulho de “não ser caloteiro”, um orgulho em total desarmonia com as práticas de corrupção, vigentes no país europeu ocidental medalhado com o bronze nesse campeonato.
c) a dívida é observada com conformismo, de modo economicista[1], dividindo-se as opiniões na classe política entre um “pagamos obedientemente” e um “pagamos obedientemente mas, agradecemos uma atençãozinha”.
3 - O capitalismo existe, convém não esquecer
Para superar as suas dificuldades de acumulação, o capitalismo altamente
globalizado, alicerçado numa competição acerba entre as multinacionais, provoca
uma encarniçada luta pelos recursos do planeta que transforma enormes áreas em
cenários de guerra e devastação ambiental.
A sua existência tem-se baseado na pressão sobre os custos de trabalho e na
necessidade de investimento para a produção de bens e serviços, para vencer a
concorrência; como elementos para incrementar a acumulação de capital. Como se
verá adiante, a financiarização vem prosseguindo essa acumulação, com a criação
de capital-dinheiro de forma totalmente desregulada, como na fábula do golem[2], enquanto monstro criado para produzir
segurança e que, posto à solta por descuido, ameaça toda a estrutura social do
planeta.
Para essa competição na venda de bens e serviços são essenciais políticas
de rebaixamento dos custos do trabalho, em termos de salário efetivo, como
ainda um prolongamento das jornadas de trabalho, em contradição total com a
produtividade que o desenvolvimento tecnológico tem permitido. Além disso, a
produção global dominada pelas multinacionais encontra-se segmentada, entre outras
razões, para o aproveitamento das chamadas vantagens competitivas, onde se
incluem os baixos preços do trabalho, as indignas condições e os parcos
direitos impostos a quem trabalha. Em suma, cada grau de competências laborais
constitui um mercado próprio, no contexto de um globalizado “mercado de
trabalho”. No gráfico seguinte, a estagnação dos salários na indústria nos EUA
mostra essa tendência.
O mesmo pode ser observado em Portugal, onde nos últimos 25 anos se
verifica uma lenta e progressiva perda de importância relativa das remunerações
do trabalho face a outros rendimentos e reveladora da incapacidade
reivindicativa dos trabalhadores, manietados por burocracias sindicais
partidarizadas.
Criam-se assim bolsas enormes de desempregados e subempregados, trabalhadores
sem-papéis, pobres ou precários, para além de reformados pressionados pelo
assalto que se vem efetuando aos valores acumulados de descontos para os
sistemas de segurança social. Constituem-se ainda enormes segmentos de
trabalhadores em funções burocráticas estupidificantes e mal pagas, como é
norma geral na burocracia. Aqueles, preenchem aparelhos militares e policiais
sem funções que não a prevenção de ameaças ao poder do capital; sistemas
judiciários e fiscais atolados em casos de crime, conflitualidade comum,
cobranças, coimas e multas; gigantescos aparelhos administrativos,
publicitários ou de vendas das multinacionais, replicados por pequenas e médias
empresas; funções de vigilância em edifícios e locais públicos; de tratamento
de dados, etc. Para o capitalismo de hoje, existem claramente, demasiados seres
humanos no planeta.
Deste contexto de pressão sobre os rendimentos do trabalho, para garantia
de baixos custos de produção de bens ou serviços, não resulta suficiência para
a satisfação das necessidades de reprodução do capital investido, necessário
para acompanhar a concorrência, daí surgindo a conhecida tendência para a baixa
das taxas de lucro; nem tão pouco se cria uma procura adequada à compra
daqueles bens ou serviços, ainda que incitados por uma publicidade
invasiva.
Para além dos
elementos que se prendem com salários e outros aspetos relacionados com o
trabalho, há outro elemento essencial que bloqueia o capitalismo - a ausência
de investimento. Por um lado, a pressão sobre os preços do trabalho favorece a
geração de lucros mas, a concorrência e a evolução tecnológica exigem aumentos
de produtividade, exigem investimentos, fusões e aquisições entre empresas o
que, contudo, não evita a tendência para a baixa das taxas de lucro, mesmo que
eliminando operadores. Na realidade, na grande maioria dos setores de atividade
observa-se o domínio de poucas empresas com a presença de outras, mais pequenas,
onde os salários e os lucros são menores, tal como as capacidades de
investimento; são muito poucos os casos de livre concorrência entre pequenas
empresas, como considerado por Adam Smith.
Antes do recente domínio do neoliberalismo falava-se dos modelos alemão e
japonês (a que se poderia juntar o capitalismo de estado, soviético), de
integração entre a grande indústria e o capital bancário nacional, com a
criação do capital financeiro, uma designação criada por Hilferding em 1910[3] e adoptada posteriormente por Lenin.
Essa formulação era colocada em contraponto com o modelo de gestão
anglo-saxónico[4], de separação entre aqueles sectores,
para que o capital bancário e as instituições financeiras em geral se
libertassem das amarras do financiamento de sectores industriais e da sua
gestão, para uma dedicação muito flexível como detentores de títulos,
intervindo nas empresas nomeadamente em operações de aquisição e fusão, a que
se seguem actos de “downsizing”, de redefinição e redimensionamento que, em
regra, incorporam despedimentos. Como é evidente, é esta versão de origem
anglo-saxónica que vem sendo predominante como constituinte do neoliberalismo.
Como é natural no capitalismo, os capitais tendem a dirigir-se para os
negócios onde a sua rendabilidade possa ser maximizada na comparação com outras
atividades. Em termos de rendabilidade, sobressai o sistema financeiro, através
da especulação financeira, imobiliária ou sobre mercadorias (as “commodities”),
da indústria de armamento ou dos tráficos diversos, de emigrantes, de drogas,
de órgãos, de armas… desenvolvendo-se para o efeito fórmulas de benevolência
fiscal, os conhecidos endereços offshore, no seio da mais sagrada
das liberdades nos tempos que correm – a da movimentação de capitais.
Sendo mais rentável o “investimento” financeiro do que o investimento na
produção de bens e serviços, a maioria dos capitalistas prefere colocar os seus
pecúlios nos ditos mercados financeiros, com aplicação mais flexível, com
contabilização de lucros mais rápida, instantânea até, do que adquirir
equipamentos modernos, tentar vencer a concorrência, arriscar com o surgimento
de mudanças tecnológicas, de hábitos, modas, etc., antes da amortização técnica
ou financeira do equipamento, sabendo-se que o comprometimento com esse
equipamento não pode facilmente ser reconduzido à condição de capital-dinheiro.
Isso, ao contrário das reconversões dos capitais aplicados em títulos na roleta
financeira, que são fáceis, de realização instantânea, decidida por algoritmos
informáticos.
No entrecruzar caótico de várias linhas de atuação, a satisfação ou não das
naturais necessidades humanas é uma variável aleatória que entretém os
institutos de previsão[5], armados com poderosos computadores,
dúzias de prémios nobel, coortes de professores universitários e sobre cujos
resultados já demos alguns exemplos.
Gente, só interessa se tiver empregabilidade, como se diz na novilíngua
neoliberal.
Sendo escasso o rendimento
corrente das populações para a satisfação das suas necessidades, mormente
daqueles que vivem do trabalho, mais insuficiente ele se mostra se for preciso
encontrar no “mercado” a satisfação de direitos elementares como o da
habitação; e ainda para corresponder aos apelativos consumos propagados pelos media –
nomeadamente automóveis, viagens, equipamentos domésticos de moda. Em consequência,
o sistema financeiro facilita, em regra, o crédito e a sua expressão duradoura,
a dívida, como mecanismo de captação de rendimentos futuros, eventualmente por
toda a vida; como no capitalismo as próprias pessoas são tomadas como
mercadorias, o mecanismo da dívida torna a própria vida de cada um como
propriedade capitalista.
Nessa endogeneização da divida como uma necessidade trivial inserem-se
vários elementos. Um, são as dívidas para a compra de habitação,
uma vez que os estados neoliberais entregaram a satisfação dessa necessidade
elementar ao ditoso mercado, para alegria dos bancos e da corrupção política
envolvida no processo; e para suprema desdita de quantos, caídos no desemprego,
ficaram sem as casas mas com parte da dívida.
O outro elemento é constituído pelas dívidas para a satisfação de consumos
com taxas de juro elevadíssimas, as dívidas de curto prazo no seio da
utilização de cartões de crédito, para além de comissões e ainda taxas várias
que são permitidas aos bancos, mesmo que a detenção de uma conta bancária com
cartões associados, seja, de facto, uma imposição estatal. A aceitação da
divida como normalidade é uma forma de captura ideológica por parte do capital.
Como a dívida privada fica restrita a um indivíduo, uma família, uma
empresa, mesmo com garantias, o risco é relativamente elevado, porque de pouco
serve ao sistema financeiro apoderar-se, em caso de incumprimento, de casas e
empresas, uma vez que não é do seu interesse a gestão de imobiliário
desvalorizado, nem a recuperação de empresas mais ou menos falidas. Essas
garantias constituem, principalmente, um garrote para o devedor pois, em caso
de incumprimento, promovem a sua ruina.
Em Portugal, nos anos 90, os bancos detinham direitos creditícios sobre
muitos terrenos e fábricas de empresas falidas e, encaminharam-nos para
projetos imobiliários transformando algumas perdas em novos créditos, com altas
taxas de lucro; e jamais para a sua recuperação como empresas industriais.
Simultaneamente, estimularam o boom da habitação que
o Estado e a classe política nunca cuidaram, bem como a deriva do investimento
público e público-privado, em autoestradas e eventos faraónicos, como a Expo-98
e os estádios de futebol.
4 – Os Estados engordam o sistema financeiro
Durante os anos 80, o sistema financeiro global, com o FMI/Banco Mundial à
cabeça, forçou os países do chamado Terceiro Mundo a endividarem-se, como
processo de rapina, de privatizações, de integração desses países no mercado
global, em detrimento de qualquer lógica de bem-estar dos povos e aliciando as
classes políticas locais para o efeito, com o recurso a brutais ditaduras, se
necessário (Chile, Brasil, Argentina…). Como em muitos desses países a grande
pobreza era a regra e as classes médias pouco numerosas (ou em processo
acelerado de perda de poder de compra), não era viável um endividamento
significativo das famílias; e as grandes empresas, no padrão terceiro-mundista,
eram públicas ou de capital estrangeiro.
Resulta daqui a importância da captura dos povos através do Estado e das
suas oligarquias, civis ou militares, com a constituição de enormes dívidas públicas.
Neste contexto, o Estado, através da punção fiscal transfere rendimento dos
pobres – sem qualquer capacidade de acesso a crédito bancário – para o sistema
financeiro… através da dívida pública. Nas sociedades europeias, envelhecidas,
os reformados, por exemplo, não são um segmento de população com capacidade
para um (maior) endividamento mas, todos através da carga fiscal veem uma parte
dos seus rendimentos capturados como contributo para pagamento de encargos com
a dívida pública.
Contrariamente ao que se diz, os estados-nação não vão à falência, pois têm
sempre uma população compelida a financiar a armadilha da dívida, porque não
pode fugir em massa e porque há um aparelho de repressão fiscal e judicial para
obrigar ao pagamento; em casos extremos, os credores aceitam perdas, como no
caso da Grécia em 2012 ou reescalonam as dívidas, aliviando as prestações
próximas e onerando-as a médio prazo. Assim, é muito mais aliciante para o
sistema financeiro aceitar títulos de dívida pública, sem se envolver
diretamente no endividamento ou na cobrança de populações em dificuldades,
utilizando portanto, os Estados e as classes políticos nessa intermediação.
Dito de outro modo, o sistema financeiro desenvolve mecanismos de criação de
rendas, perpétuas, a seu favor através da geração de dívida pública e cada
classe política cumpre o seu papel de distribuição pela população, a tarefa de
mutualizar a dívida internamente e de modo desigual, claro está.
Na Europa, em caso de desmantelamento da UE ou da Zona Euro, bem como de
saídas solitárias daquelas instituições, o isolacionismo identitário
facilitaria o desiderato do sistema financeiro de criação de rendas perpétuas
sob a forma de dívida. Se não tem sido possível até agora constituir
plataformas para a construção de uma união solidária dos povos europeus, cada
estado nação barricado nas suas fronteiras, com a sua bandeira na torre de
menagem e moeda própria a
circular, tornar-se-ia uma mais fácil presa do capital financeiro globalizado,
dos seus boicotes e das suas chantagens.
Conscientemente ou não, as derivas patrioteiras, defendidas por LePen e
suas metástases espalhadas pela Europa, se vingarem, promoverão largos sorrisos
no capital financeiro global e os seus protagonistas aceitarão o papel de
carrascos dos povos, com uma ferocidade que os gangs inscritos no PPE ou
S&D até agora não têm utilizado. Convém recordar que a República de Weimar
mesmo tendo assassinado Rosa Luxemburgo e Karl Liebknecht se situou muito aquém
da barbaridade assassina do III Reich.
4.1 – Bill Clinton colocou o monstro à solta
A deriva do sistema financeiro para a autonomia face à atividade produtiva
beneficiou enormemente com a revogação, por Bill Clinton em 1999, da Lei
Glass-Stegall promulgada por Roosevelt em 1933 para garantir uma ligação
estável entre poupança e investimento e evitar o contágio sistémico da
atividade especulativa. Não havendo separação entre bancos comerciais e de
investimento (leia-se especulativos), o dinheiro poderia crescer de forma
inaudita, sem limites, com os bancos comerciais a poderem também entrar na
especulação, comprometendo não só o seu papel no financiamento das empresas
mas, também os depósitos dos particulares e, portanto toda a atividade
económica no planeta, uma vez que deixou de haver verdadeiros sistemas
nacionais[6]. Por exemplo, em 2013, as
responsabilidades face a derivados do Deutsche Bank,
correspondiam a 16 vezes o PIB alemão tornando este banco too big to
fail e sob a carinhosa proteção de Merkel e Schauble. A dívida global,
pública ou privada, era calculada pelo FMI em $ 152 biliões - dos quais $ 50
biliões são da responsabilidade dos estados - correspondentes a 225% do PIB
mundial (comparar com nota 5). Assim, o total das dívidas públicas correspondia
a 75% do PIB global mas, correspondendo a 133.7% no caso português.
Por outro lado, empresas e particulares encontraram também, na volúpia
especulativa, formas de aumentarem os seus capitais e poupanças, beneficiando
das maiores taxas de lucro disponíveis na área financeira e ainda da facilidade
da mutação dos seus títulos em dinheiro e vice-versa. Assim, a economia
“normal”, produtora de bens e serviços, inseriu-se na lógica dos capitais
financeiros, procurando apresentar lucros avultados para obter crédito com
taxas de juro interessantes, para manter em constante valorização os seus
títulos cotados na bolsa, pagando principescamente aos seus gestores com “stock
options”, para que aqueles se mostrem empenhados na valorização dos
títulos.
Suponhamos que um banco acolhe um depósito a prazo no valor de 1000,
sabendo-se que, durante esse período poderá utilizar esse dinheiro excepto uma
parte, digamos de 10%, por exigência do banco central. Assim, o banco poderá
emprestar 900 a um cliente, o qual irá utilizar, por hipótese, o dinheiro numa
compra pagando através do multibanco e recaindo esse valor na conta do
vendedor. Os 1000 iniciais resultaram em depósitos totais de 1900 e um crédito
concedido de 900 sucedendo-se o exercício tantas vezes quantas as necessárias,
podendo o segundo depósito alicerçar um empréstimo de 810, etc. Daqui o
interesse dos bancos em se situarem em todas as transações de pessoas e
empresas, para captar um volume maximizado de depósitos a multiplicar como
créditos, sabendo que só uma parte marginal do volume global dos depósitos
volta diariamente aos bolsos dos particulares. Este mecanismo é designado por
multiplicador do crédito e constitui um privilégio dos bancos, não podendo um
indivíduo proceder de igual modo.
O esquema funciona sempre que os depositantes acreditarem no banco ou no
conjunto deles, como guardiães do seu dinheiro pois quando isso deixa de
acontecer pode haver uma corrida aos depósitos, com os bancos insolventes de
portas fechadas guardados pela polícia (Argentina) ou essa corrida originar uma
limitação aos levantamentos de dinheiro como aconteceu na Grécia, em 2015,
sucedendo ali algo de invulgar que é haver mais dinheiro nas mãos do público do
que nas contas dos bancos. O receio de inesperadas crises financeiras faz os
Estados, em conluio com o sistema financeiro, procurar reduzir ao máximo a
posse de dinheiro físico junto das pessoas, pensando-se mesmo em tornar todo o dinheiro virtual.
Posteriormente a operações de concessão de crédito como as atrás
exemplificadas, um banco pode tomar um conjunto desses créditos repartindo o
valor da sua soma, em vários títulos que são colocados à disposição do mercado,
sendo adquiridos por elementos do próprio sistema financeiro – é a
titularização. O credor original prescinde de uma parte dos juros que cobra aos
devedores efetivos para recuperar grande parte do capital emprestado e poder
utilizá-lo de novo, iniciando assim uma nova cadeia de créditos. Por sua vez,
os compradores desses títulos, irão utilizar esses e outros com distintas
proveniências e proceder a outras titularizações; essa multiplicação enforma as
pirâmides de Ponzi, do nome de um burlão que, nos anos oitenta do século
passado teve uma réplica em Portugal, a D. Branca. Como se compreende, esta
fórmula incrementa de modo inaudito o volume de obrigações, gera um emaranhado
de dívidas articuladas como um castelo de cartas que, quando desaba, atinge os
povos, através da perda de poupanças, de empregos e de planos de austeridade
impostos pelas classes políticas como procuradores do sistema financeiro,
dispostos a usar fundos públicos para minorar as perdas daquele. Nesse caso a
salvação dos bancos passa pelos bail-ins ou pelosbail-outs, cujas designações representam,
respetivamente, o sacrifício dos acionistas ou da população em geral, obrigada
a participar na recapitalização, pelo Estado, pelo vetor de serviço da classe
política que, naturalmente, não pergunta à população se pretende ajudar um
banco em dificuldades.
Depreende-se também que a partir dos primeiros elos da cadeia de títulos
emitidos em operações de titularização, cada tomador sabe a quem os comprou mas
nada sabe das operações incluídas nas fases anteriores; e, menos ainda sobre a
identidade ou a solvabilidade do devedor originário. Se existir um ou outro
caso de incumprimento daqueles últimos, o banco credor originário acarretará
com o prejuízo, sem afetar a cascata. O problema surge em caso de crise, se
muitos devedores caem na falência ou no desemprego, deixando de pagar e se as
garantias se desvalorizam, impedindo o banco de recuperar o valor ainda em
dívida; foi o que aconteceu com os célebres subprimes, em
finais de 2007, empréstimos de muito alto risco, concedidos a famílias pobres
aliciadas pela insinuação das instituições financeiras de que as suas casas se
estavam a valorizar e que poderiam, aumentar o seu endividamento usando-as como
garantia. Até que…
No seguimento da crise financeira de 2007/08 e apesar da sua violência os
Estados e o sistema financeiro não levaram a cabo as medidas anunciadas de
redução da dimensão dos bancos e do volume de dívida, maior regulação, produtos
derivados menos complexos, etc. O susto entrou em choque com a sobrevivência da
máquina especulativa que sustenta o capitalismo neoliberal de hoje, foi-se
embora mas, olha apreensivo a plúmbea cor do céu.
O referido espírito de sobrevivência associado à domesticação das classes
políticas e à ausência de contestação social significativa conduziram a que,
pelo contrário, o sistema bancário e o endividamento tenham crescido, as fusões
e a concentração de capitais não tenham abrandado, ultrapassando mesmo as
registadas antes da crise e que 45% das transações passem longe do nariz dos majestáticos
reguladores que, por essa razão, melhor receberiam o epíteto de
passadores[7]. Segundo a mesma fonte o endividamento
global atinge 285% do PIB e os preços das ações crescem sem correspondência com
o desempenho das empresas, na sequência da emissão descuidada de meios
financeiros pelos bancos centrais e "cujo desenlace é tipicamente o
rebentamento”. Afirma-se ainda que é enorme o risco para os supervisores Fed e
BCE que detêm em obrigações públicas ou privadas o correspondente a 13% e 9% do
PIB dos EUA e da Zona Euro, respetivamente. Para o efeito considera-se no mesmo
artigo que é preciso sair da conjuntura de baixíssimas taxas de juro mas que
isso será dramático se não acompanhado por crescimentos assinaláveis no
rendimento das famílias e das empresas; o que se afigura muito difícil de
acontecer pois a elevação das taxas de juro, associadas a uma menor emissão
monetária provoca acrescidas dificuldades a empresas e maiores encargos
estatais com a dívida.
(continua)
Este e outros
textos em:
[1] Esse economicismo em total
sintonia com os compêndios de desenvolvimento capitalista, na sua actual versão
neoliberal encontra uma liminar afirmação no Projeto de resolução 456/XII (2ª)
de 19/9/2012 apresentado pelo PCP à Assembleia da República, visando a
renegociação da dívida pública e do qual extraímos as preciosas afirmações
seguintes.
· “…
tal como o PCP sempre afirmou, a consolidação das contas públicas e a redução
da dívida pública tem de ser obtida com o crescimento económico…” (pag. 2) o que
significa que em Portugal, se terá de trabalhar mais e mais, sem que se
considere qualquer alteração na relação capital/trabalho, formas de
redistribuição de rendimentos, etc;
· “Renegociar
a dívida é garantir afinal o seu pagamento que não será possível sem a criação
de riqueza” (pag. 3); isto é, se forem bonzinhos pagaremos para todo o sempre a
dívida que nos obrigarem a assumir, tornar-nos-emos vossos dedicados rendeiros.
Na realidade, não há criação de riqueza que não seja constituída como renda a
favor do sistema financeiro, sendo a reestruturação a efetivar-se, um mero
brinde de supermercado;
· A
“determinação completa e rigorosa da dimensão da dívida… a levar a efeito pelo
Ministério das Finanças e o BdP”; na realidade, confia-se na isenção, no amor
ao povo da coligação PSD/CDS, liderada pelo psicopata Passos, para avaliação da
dívida, como se ela resultasse apenas de contratos mal feitos e não da montagem
pelo sistema financeiro de uma engrenagem de captura dos povos periféricos da Europa.
Recorde-se que antes das eleições ganhas pelo PSD, o seu chefe Passos Coelho
referiu, junto de Angela Merkel, numa viagem para a sua apresentação pela
Europa que iria fazer uma auditoria à dívida, ideia que foi desde logo rebatida
pela chanceler.
· Em
finais de 2011, surge a IAC – Iniciativa para uma Auditoria Cidadã, sob os
auspícios do BE, lançada com pompa e circunstância com a presença de altos
técnicos estrangeiros e os habituais monos da intelligentsia unitária
lusa. Em maio de 2013, a IAC declara a sua total falência com uma proposta
hilariante, se não fosse absolutamente reacionária.
[3] Não utilizamos esta acepção de
capital financeiro que nos parece ultrapassada pela realidade. Preferimos
considera-lo como o conjunto de ações, obrigações, títulos de dívida, posições
acionistas, derivados e outros, transacionados dentro ou fora das bolsas,
detidos por um opaco e volúvel conjunto de empresas, fundos, meras siglas de
registos offshore, que tomam empresas produtoras de bens ou serviços, simples
mercadorias (as commodities) e contratos de seguro ou transporte, como
instrumentos de especulação, sempre numa lógica rentista de geração e
acumulação de capitais.
[4] Sobre esta dicotomia entre
arranjos do capital ver “Capitalismo contra Capitalismo” de Michel Albert
(1992)
[5] Mesmo elementos de grande
relevância para o conhecimento da realidade são objeto de grandes discrepâncias
reveladoras da incapacidade de aferição das dimensões dos problemas. A revista
“Emerging Markets” media, recentemente, a dívida pública e privada, não
financeira, em $ 162 biliões contra $ 152 biliões apontados pelo FMI. Porém, a
revista acrescentava ainda a dívida das entidades financeiras ($ 54 biliões) –
que o FMI não considera - o que coloca a dívida global na fasquia dos $ 216
biliões, o correspondente a 327% do PIB mundial; isto é, mais de três anos de
rendimentos gerados pela população mundial!
http://expresso.sapo.pt/economia/2016-10-06-Divida-global-vale-mais-de-tres-vezes-a-economia-mundial
[6] No entanto, sempre que algum
banco entra em colapso é a população do país onde se sedia que é chamada a
contribuir para cobrir os créditos incobráveis transformados em prejuízos e
estes, a obrigarem a recapitalização ou falência, como exemplarmente se
observou nos casos BPN, Banif ou BES, em Portugal e, de modo mais extensivo, em
Espanha, entre outros. Dito de outro modo, os lucros são alegremente transferidos
para os offshores; os prejuízos, esses ficam em casa.
[7] Carlos Costa brilhou no casos BES e Banif como Vítor Constâncio havia ganho, no âmbito do BPN, o prestígio suficiente para se sentar numa vice-presidência do BCE
[7] Carlos Costa brilhou no casos BES e Banif como Vítor Constâncio havia ganho, no âmbito do BPN, o prestígio suficiente para se sentar numa vice-presidência do BCE