segunda-feira, 26 de setembro de 2016
O submundo da tauromaquia
A
imagem da tal “identidade nacional” de um Portugal pequenino, que ainda
persiste, com o aval de legisladores portugueses que sofrem de cegueira mental
|
Já tudo foi dito sobre a tauromaquia.
Esgotaram-se todas as palavras para
definir esta “coisa” a que teimam em chamar “arte” e “cultura” e “identidade
nacional”, que deve manter-se por ser tradição.
Ora, arte até pode ser, sim, a “arte”
covarde de torturar Touros e Cavalos com requintes de malvadez, numa luta
absolutamente desigual, onde a covardia do torturador contrasta com a
heroicidade do animal, previamente enfraquecido, o qual, ainda assim, luta
valorosamente pela sua vida, enquanto é cruelmente flagelado física e
psicologicamente, até à extrema exaustão, quando finalmente desiste de viver, e
o torturador aproveita para vangloriar-se, levantando os braços, triunfante,
como se fosse ele o herói, numa cena sinistra e patética.
Será a tauromaquia cultura?
Na Universidade aprendi que Cultura é o
resultado da acção positiva do Homem sobre a Natureza; é a actividade
preparatória que conduz o espírito do Homem a produzir frutos; é a realização
de valores espirituais; é o conjunto orgânico dos valores expressos pela
actividade intelectual do Homem na sua faceta construtiva.
Cultura é posse espiritual; é conquista
interior; é a grandeza moral do Homem irradiada no seu agir construtivo; é a
capacidade de escolher entre o saber e a erudição, e de ser capaz de utilizar
positivamente esse saber.
A Cultura produz valores; é o
conhecimento elaborado; é a assimilação do saber pela inteligência. Como
formação, Cultura é a agilidade do espírito; é capacidade de síntese, de
apreciar, de criticar e seleccionar os valores que nos são apresentados.
Cultura é, em suma, a atitude positiva
do Homem em relação ao mundo.
Enquadrar-se-á a tauromaquia neste
conjunto de significações de Cultura?
Quanto à tradição, só é válido manter
uma tradição quando esta dignifica a Humanidade e está conforme a atitude positiva
do Homem em relação ao mundo. Estará a tauromaquia dentro deste parâmetro?
Dalai Lama diz o seguinte: «A vida é
tão preciosa para uma criatura muda quanto é para o Homem. Assim como ele busca
a felicidade e teme a dor, assim como ele quer viver e não morrer, todas as
outras criaturas anseiam o mesmo». E isto é tão verdade que basta conviver
com qualquer animal, qualquer um que seja, para aferirmos esta certeza.
Então por que hão-de os tauricidas
achar-se no direito de torturar Touros e Cavalos para se divertirem e ganharem
dinheiro à custa desta tortura?
Nazaré Oliveira, uma abolicionista
activista, no seu excelente Blog denominado Suricatina, escreveu um artigo
intitulado «A Internet = arma contra as ditaduras», que podem ver neste link:
Neste artigo, Nazaré Oliveira aborda a
informação global e refere: «Não há desculpa para o que desculpa nunca terá:
a cumplicidade com os usurpadores do poder e para com a barbárie».
E não há mesmo.
Sabemos que a tauromaquia é uma prática
cruel, que não tem lugar no mundo moderno, e as pessoas que ainda teimam em
dirigir-se a uma arena para aplaudir esta barbárie e aquelas que a praticam,
não têm desculpa alguma para dizerem «eu não sabia», quando se toca na
questão da dor e do sofrimento dos animais.
Também não há razão para que os
governantes sejam cúmplices desta barbárie.
Está tudo escrito e dito e falado e
gritado na Internet. Só não sabe quem não quer ou quem é analfabeto ou não tem
capacidade intelectual para compreender as palavras que se escrevem e se
gritam.
No Facebook, esta matéria é tratada por
um grupo de cidadãos portugueses, que, não sendo jornalistas, não têm obrigação
de informar formando as pessoas, mas fazem-no, por se sentirem insultados na
sua humanidade, pela prática subhumana da tauromaquia, fazendo aquilo que os
órgãos de comunicação social deveriam fazer, e não fazem. (E até podemos
imaginar porquê)!
Foi no Facebook que encontrei um texto
magnífico da autoria de Luís Martins que, em poucas palavras, nos conduz ao
submundo da tauromaquia.
Escreveu ele:
«Os aficionados tentam de
formas cada vez mais desesperadas, tornar a defesa da tauromaquia num reduto inexpugnável.
Sabem perfeitamente que não há argumento algum que possa justificar a tortura e
o sofrimento de seres vivos sencientes, e isso assusta-os.
Primeiro tentaram de todas as
formas colar a tourada à tradição, julgando ser esse o tal argumento que lhes
iria proporcionar segurança no seu mórbido reduto. Enganaram-se! Agora, depois
de terem comprado a dignidade da Canavilhas, afirmam que o Estado Português
considera a tourada como uma forma de Arte, e que a Arte é indiscutível.
Segundo os torcionários é apenas uma questão de gosto... ou se gosta ou não!!!
Não é preciso muito esforço para desmontar tão débil argumentação. Em primeiro lugar, o Estado é o Povo, e é patente a condenação do Povo Português a essa forma legalizada de tortura em que consiste a tourada.
No último inquérito conhecido, 71% dos
portugueses manifestou-se contra a tourada! Mais expressividade que isto? O
facto da tauromaquia ter conquistado um lugar na Secretaria da Cultura, mais
não torna evidente, que os poderes obscuros dos seus defensores, que
conseguiram comprar a dignidade de Canavilhas. E fosse ou não a tourada, uma
forma de arte!
Justifica tal designação o uso da
tortura? Quantas formas de violência foram já consideradas formas de arte? Os
espectáculos com gladiadores foram durante centenas de anos, considerados
formas de arte. Os vestígios que chegam até nós são muitos e variados, como se
pode ver pelas fotos.
Deveremos exigir a reposição de tais
espectáculos?
Ou devemos concluir que a designação de
forma de arte, em espectáculos que promovem a violência, em vez de classificar
o espectáculo, desqualifica quem a faz?
Bem podem os torcionários continuar a
buscar nas suas mentes reduzidas e limitadas, justificações que só existem nos
seus delírios. Essa argumentação caduca só nos ajuda, pela ignorância que
traduz, pelo desconforto que revela. Em vão tentam recrutar mais apoiantes para
as suas empobrecidas hostes. Não é de certeza com argumentos tão ridículos!»
O que será necessário dizer mais?
Ah! Sim! Falta falar nos subsídios que a
tauromaquia recebe para poder manter-se neste país, onde não há dinheiro para o
que faz falta, mas para torturar Touros e Cavalos há sempre dinheiros públicos.
Isto não será insultar o Povo
Português?
E aquela iniciativa caricata, de alguns
municípios (Barrancos, Sabugal, Vila Franca de Xira) terem elevado a
tauromaquia a Património Cultural Imaterial? O que será isso? Uma anedota de
mau gosto?
Talvez, mas é também o Portugal
pequenino, no seu pior.
quarta-feira, 7 de setembro de 2016
Contra burkas e burkinis
Contra
burkas e burkinis, pela liberdade e igualdade de género
Somos não só
frontalmente contra o uso da burka e do burkini (e símbolos equivalentes), como
achamos que pode haver fundamentos para tal proibição.
A discussão sobre a proibição do uso do
burkini por algumas autarquias francesas levou a um aceso debate, algo
enviesado por ambas as partes. Se o argumento securitário subjacente ao medo do
terrorismo pode não se aplicar ao burkini, pelo menos do ponto de vista
objetivo (algo que pode ser diferente do ponto de vista subjetivo…), também a
liberdade da mulher de vestir o que bem lhe aprouver não é o cerne da questão.
Para nós, é irrelevante que se trate de burka, burkini, niqab ou chador porque
o que nos move não é o temor de possíveis atentados islâmicos, nem tão pouco a
suposta castração da liberdade (religiosa) das mulheres de se vestirem como
desejarem. Com efeito, o que pretendemos defender, assertivamente, é a
liberdade e a igualdade de género; e, por essa via, defender um dos
elementos-chave do núcleo duro das nossas sociedades liberais e democráticas:
os direitos humanos fundamentais, nomeadamente o direito à igualdade (e à
liberdade) de género. E, por isso, somos não só frontalmente contra o uso da
burka e do burkini (e símbolos equivalentes), em espaços públicos das nossas
sociedades democráticas, como achamos que pode haver fundamentos
histórico-políticos e, acessoriamente, jurídico-constitucionais para tal
proibição, mesma que fira a liberdade religiosa.
A nossa
perspetiva contra o uso da burka e do burkini assenta em três eixos fundamentais.
Primeiro, na necessidade de defendermos os direitos humanos fundamentais,
nomeadamente o direito à igualdade de género, como núcleo duro das nossas
sociedades liberais e democráticas desde o alvor do liberalismo político
(Revoluções Americana, 1776, e Francesa, 1789), mais tarde atualizado pelo
democratismo, pelo republicanismo e pela social democracia. O mínimo ético irredutível estabelecido pela
Declaração Universal dos Direitos do Homem postula no seu artigo 1º que “Todos
os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e em direitos. Dotados de
razão e de consciência”, confirmando a ideia de que os direitos humanos
decorrem da dignidade humana, como um valor ínsito ao homem, exatamente por
esta sua condição de racionalidade. Os direitos humanos nas sociedades liberais
e democráticas são direitos inalienáveis dos indivíduos, ou seja, tem uma raiz
individualista e não coletivista (como nas visões marxistas de tipo soviético)
ou comunitarista (como nas visões multiculturalistas). Portanto, sendo nas
nossas sociedades liberais e democráticas os direitos humanos uma proteção dos
indivíduos contra a arbitrariedade do poder, não podem os mesmos ser usurpados
nem pelo governo do dia, nem pela pertença a determinadas comunidades: às
mulheres muçulmanas não pode ser subtraído o direito à liberdade e à igualdade
de género só porque pertencerem a uma comunidade étnico-religiosa que não se
revê nesse axioma.
Em segundo
lugar, do nosso ponto de vista o que está aqui em causa não é a suposta
liberdade da mulher de vestir o que bem lhe aprouver. Achamos aliás que seriam patéticas, se não
fossem trágicas, as comparações (que por aí pululam, nas redes sociais, na
imprensa, etc.) comparando a proibição do burkini com uma eventual proibição da
utilização de leggies, fatos de mergulhador, de motard, indumentárias de
freira, etc. Por um lado, porque não estamos a falar de membros do clero
muçulmano, mas sim de cidadãs em geral. Por outro lado, porque o burkini é um
símbolo de menorização e subalternização das mulheres que fere ostensivamente
os nossos princípios da liberdade e igualdade de género. Alguém já viu algum
homem muçulmano com esta indumentária? Sobre este assunto vale a pena citar as
palavras de uma voz dissonante na comunidade muçulmana, Kamel Daoud, que escreveu
em 14/2/2016 um interessantíssimo artigo para o New York Times sobre “A miséria
sexual no mundo árabe”: “O sexo é um completo tabu em países como a Argélia, a
Tunísia, a Síria ou o Iémen, devido a um ambiente conservador associado a uma
cultura patriarcal (…). Em alguns países é-lhes (às mulheres, leia-se)
permitido o acesso ao espaço público apenas se renunciarem aos seus corpos pois
deixá-las ir descobertas seria revelar o desejo que o islamita, o conservador e
o jovem fanatizado querem negar. As mulheres são vistas como uma fonte de
destabilização”. Também a organização de mulheres muçulmanas "Women
Without Veils” publicou uma declaração, no Dia Internacional da Mulher,
intitulada “O véu negador da liberdade e da igualdade" na qual declarava
que "Nós nos recusamos a usar o véu, pois representa uma violência
simbólica visível num espaço público... os islamitas estão formalizando a
desigualdade entre os sexos no contexto familiar e social em detrimento dos
valores fundamentais da República”. Por isso as comparações citadas são
perversamente míopes porque enformadas por uma visão assente numa (suposta)
liberdade ahistórica e apolítica das mulheres muçulmanas.
Claro que as
comunidades muçulmanas não são homogéneas e mesmo do ponto de vista do grau de
conservadorismo e patriarcalismo há uma significativa diversidade. Basta
pensar, do lado mais liberal e secularizado, na comunidade ismaelita, onde as
mulheres andam geralmente sem quaisquer véus. Todavia, também sabemos que o
recrudescimento do uso destes símbolos ultraconservadores e das orientações e
práticas que lhes estão associadas, nos tempos mais recentes, está ligado à
crescente influência de duas das mais conservadoras correntes do islamismo, o
wahbismo e o salafismo (ver Yasmin Alibhai-Brown, Refusing the Veil, Biteback,
2014).
Relativamente
ao pressuposto de que há uma decisão livre e autónoma destas mulheres no uso
destes símbolos, gostaríamos de sublinhar que tal é algo que está por
demonstrar (e que será, tendo em conta os dados que conhecemos sobre esses
grupos sociais, algo residual, na melhor das hipóteses). Com efeito, o
exercício da plena liberdade pressupõe autonomia no processo de deliberação
face às escolhas individuais, mas os últimos dados referentes à liberdade das
mulheres e o “Global Gender Gap Index 2015” revelam um recuo, nos últimos 10
anos, das liberdades das mulheres e um agravamento do hiato entre homens e
mulheres nos países muçulmanos, encontrando-se a Arábia Saudita, Oman, Egipto,
Mali, Líbano, Marrocos, Jordânia, Irão, Chad, Síria, Paquistão e Iémen no fundo
da tabela.
É verdade
que pode haver aqui um conflito entre valores fundamentais das nossas
sociedades demoliberais, nomeadamente entre o direito à liberdade religiosa,
por um lado, e os direitos à liberdade e igualdade de género, por outro. Logo,
impõe-se uma escolha que é sobretudo do domínio da política e não tanto do foro
jurídico. Do nosso ponto de vista, do que se trata é, num contexto em que é
preciso optar e afirmar como queremos viver nas nossas sociedades democráticas
e liberais, de defender os nossos valores matriciais da liberdade e da
igualdade de género mesmo que tal implique comprimir a liberdade de uma
determinada religião que, pelo menos em determinadas leituras, os põe
claramente em causa. E estão enganados aqueles que acham não se podem produzir
determinadas normas que visam apenas certas comunidades: basta pensar que, num
contexto de plena liberdade e pluralismo partidários, determinadas sociedades
proíbem os partidos fascistas e/ou nazis. É que acima do direito está a
história e a política, ou seja, a consolidação do direito à liberdade e
igualdade de género traduz um conjunto de lutas sociais e políticas, nas nossas
sociedades, que urge defender assertivamente, para não as defraudarmos.
Professor de
Ciência Política do ISCTE-IUL
Professora
de Relações Internacionais da UBI
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