Linha férrea que conduzia à entrada do campo de
Auschwitz / Getty Images |
A 27 de janeiro de 1945, as tropas soviéticas entravam no campo de concentração de Auschwitz - foi há precisamente 70 anos.
Para assinalar um dia
histórico, o Expresso disponibiliza online um texto publicado originalmente a
28 de janeiro de 1995, onde alguns dos sobreviventes evocam o drama e refletem sobre um episódio julgado impensável.
Para entrar em Oswiecim
(nome polaco de Auschwitz) pela estrada que vem do norte é preciso atravessar o
caminho-de-ferro.
Há meio século, os comboios
ainda passavam nestes carris. Os vagões de mercado rias chegavam atulhados de
gente de diferentes países da Europa. Saíam depois repletos de roupa, relógios
e cabelo. Aos seus proprietários nunca foi permitido abandonar esta cidade do
sul da Polónia. As cinzas de um milhão e meio de pessoas, na grande maioria
judeus, foram despejadas num rio vizinho. Toda uma indústria de matar,
idealizada e organizada minuciosamente pelo regime nazi de Adolf Hitler.
Há 50 anos, no dia 27 de
Janeiro de 1945, as tropas soviéticas entraram na cidade. Os soldados do
general Petrenko viram uma imagem aterradora. Cerca de sete mil prisioneiros,
famélicos e enregelados, saíram ao seu encontro no meio de montículos de
cadáveres de companheiros, mortos por assassinato ou de fome nos últimos dias
de cativeiro. Ainda poucas horas antes os homens das SS haviam queimado vivos
várias dezenas de prisioneiros ao incendiar um dos barracões. "Ouvimos um
rebentamento de uma granada ao lado da porta principal do campo. Saímos e
deparámos com uns soldados com as armas em posição de disparar. Ao verem-nos,
baixaram as armas", recorda Anna, agora com 65 anos. "Saudámo-los em
russo. Responderam-nos: "Agora sois livres'".
Rolf Vennenvernd/ Epa A frase em alemão "Arbeit macht frei" (O trabalho liberta),
encima o portão principal do campo de Auschwitz
|
Tudo começara em 1940. As autoridades alemãs encomendaram a tarefa de organizar o campo a Rudolf Hoess, um oficial das SS que fora antes comandante do campo de concentração de Sachsenchausen. O campo tinha de ser organizado porque já não havia lugar nos cárceres da Silésia (sul da Polónia). Lá deve riam ser alojados os presos de guerra, os presos políticos e, principalmente, os representantes das nações condenadas a desaparecer: os judeus e os ciganos. Te riam de trabalhar na indústria militar da zona e também nas explorações agrícolas. O primeiro carregamento de presos polacos chegou a Auschwitz a 14 de Junho de 1940.
Para Hoess a tarefa foi
complicada. "Não era fácil. Um complexo de edifícios já existentes, em bom
estado mas totalmente abandonados e cheios de insectos, teriam de ser
convertidos em campo transitório para dez mil prisioneiros", recordava nas
suas memórias, nos meses que precederam a sua execução em 1947. "É muito
mais fácil criar um campo novo do que reformar um conjunto de edifícios e
infraestruturas já existentes." Hoess estava, contudo, esperançado:
"Sabia que em Auschwitz se poderia fazer algo de útil graças ao trabalho
incansável e tenaz de todos. Desde o comandante até ao preso mais
humilde." Foi a pensar nisso que mandou colocar no portão principal de
Auschwitz a famosa inscrição: "Arbeit macht frei" (o trabalho
liberta).
Extermínio em massa
Mal foi terminado o campo de Auschwitz, concebido inicialmente como "ligeiro", logo se transformou num campo de extermínio. Ainda durante a fase de construção, entre Março de 1941 e finais de Janeiro de 1942, desapareceram do campo sem deixar rasto 18 mil prisioneiros. Não era em vão que o subcomandante do campo, Karl Fritz, costumava dizer aos recém-chegados: "Isto não é um sanatório, mas sim um campo de concentração alemão; daqui não se sai senão pela chaminé." De facto, os presos morriam de fome devido à tortura e ao trabalho extenuante, sendo os corpos cremados.
Mal foi terminado o campo de Auschwitz, concebido inicialmente como "ligeiro", logo se transformou num campo de extermínio. Ainda durante a fase de construção, entre Março de 1941 e finais de Janeiro de 1942, desapareceram do campo sem deixar rasto 18 mil prisioneiros. Não era em vão que o subcomandante do campo, Karl Fritz, costumava dizer aos recém-chegados: "Isto não é um sanatório, mas sim um campo de concentração alemão; daqui não se sai senão pela chaminé." De facto, os presos morriam de fome devido à tortura e ao trabalho extenuante, sendo os corpos cremados.
Jacek Bednarczyk /Epa Placa que avisava para "alta voltagem - perigo de morte", junto às vedações do campo de Auschwitz |
"A luta pela sobrevivência no campo era implacável", escreveu nas suas memórias Czeslaw Marcinko, um dos primeiros presos a chegar a Auschwitz (número 39), em 1940. "0 essencial era encontrar comida, evitar o trabalho mais duro e furtarmo-nos às ordens". Tudo isso, porém, podia terminar num espancamento. Marcinko, por exemplo, foi condenado a 40 chicotadas por ter aceite um pedaço de pão que lhe havia sido oferecido por um habitante de Oswiecim quando trabalhava fora do campo. "Fui agarrado por dois agentes das SS. Tive que contar os golpes em voz alta. Quando perdi o conhecimento, levaram -me para o `bloco' [edifício onde viviam os presos]. "Não reconheci a minha culpa. Sabia que nesse caso me teriam condenado à morte." Ao fim de meio ano, o peso de Marcinko desceu de 70 para 43 quilos.
"Não quero descrever
todas aquelas brutalidades", confessa outro preso, Jozef Baja, que foi
transportado para Auschwitz em 1943. "Os golpes eram tão fortes que os
chicotes se partiam em cima das cabeças e dos ombros; o trabalho era
insuportável; vi gente afogada em latrinas."
Contudo, estes dois
prisioneiros sobreviveram a Auschwitz e, mais tarde, a outros campos para onde
foram evacuados. Eram úteis porque eram capazes de trabalhai e não pertenciam
às raças condenadas ao desaparecimento.
Em finais de 1940, foi
tomada a decisão de ampliar o campo para se proceder ao extermínio maciço de
prisioneiros. "Logo desde o início empenhei-me totalmente neste trabalho,
direi mesmo que estava possesso com a ideia de cumprir a ordem", recorda
Hoess. "As dificuldades que se apresentavam ainda me empolgavam mais. Não
queria render-me, a minha ambição não mo permitia", dizia Hoess nas suas
memórias sobre a primeira etapa da construção de Birkenau. A tarefa fora
definida pelo Reichsführer SS (comandante-chefe das SS), Heinrich Himmler - a
construção de um campo para 100 mil prisioneiros de guerra; a ampliação do
campo já existente para conseguir espaço para 30 mil pessoas. "Eram então
números absolutamente desconhecidos", assegurava Hoess, "um campo
para dez mil pessoas já era na altura considerado muito grande".
A três quilómetros de
Auschwitz, num campo "modesto", com apenas 20 edifícios onde se
amontoavam cerca de dez mil prisioneiros, construiu-se o gigantesco campo de
Birkenau, também conhecido como Auschwitz II. Esta autêntica fábrica de matar
começou a funcionar em Março de 1942. Ocupava uma superfície de 175 hectares.
Era composto por 300 barracões e quatro enormes fornos crematórios, integrados
nas câmaras de gás.
Dezenas de barracões foram
conservados até aos nossos dias, tendo todos sido construídos pelos próprios
presos. É notória a minúcia com que foram planificados. Enquanto em Auschwitz
se havia procedido a uma adaptação das instalações de um quartel de cavalaria a
campo de concentração, em Birkenau foi tudo construído de raiz. Parte dos edifícios
foi feita em ladrilhos, mas a grande maioria é de madeira. Dos que foram
incendiados restam apenas as chaminés. Neste mês de Janeiro, tal como há 50
anos, está muito frio e há neve. Sobre o fundo branco eleva-se uma floresta de
chaminés.
Mas as chaminés mais
sinistras não ficaram de pé. Quando se entra no campo pelo famoso "portão
da morte" e se seguem com os olhos as linhas do comboio, avistam-se ao
fundo, a cerca de um quilómetro, umas ruínas. São os escombros dos fornos
crematórios. O letreiro colocado pe rto do Forno Crematório II informa:
capacidade - duas mil pessoas, roupeiro, câmara de gás, elevador eléctrico para
os fornos, sala de cortar o cabelo, sala dos fornos (para extracção dos dentes
de ouro), forno para a incineração de documentos e outros artigos pessoais
desnecessários.
Reuters Latas de gás Zyklon B, usadas pelos nazis |
Câmaras de gás
Foi justamente para aqui que foram conduzidos comboios cheios de judeus de toda a Europa. Foi justamente aqui que se aplicou, em escala maciça, o método de extermínio de seres humanos com gás.
O Ziclon B, uma variedade
do ácido prússico, foi utilizado em Auschwitz pela primeira vez em Setembro de
1941. Para primeiras vítimas foram escolhidos prisioneiros de guerra
soviéticos. A "operação" foi levada a cabo num depósito de cadáveres
previamente esvaziado, em cujo tecto se haviam aberto uns buracos. A aplicação
do gás, antes utilizado como insecticida no campo, foi considerada "uma
grande invenção " na opinião do comandante Hoess, que não sabia como
cumprir com eficácia a ordem de extermínio maciço.
"Descobrimos
finalmente como aquele gás era necessário e como devia ser utilizado",
escreveu Hoess nas memórias, "sempre senti um autêntico horror ao pensar
nos fuzilamentos em massa. Agora estava tranquilo pois não haveria carnificinas
e se pouparia sofrimento às vítimas. Recordava bem o que me haviam contado
sobre os fuzilamentos e as cenas terríveis quando os feridos tentavam fugir e
era preciso voltar a disparar contra mulheres e crianças".
A partir de 1942, ano em
que Hitler tomou a decisão de "solucionar de forma definitiva a questão
judia", ou seja de matar 1 milhões judeus europeus, a operação ensaiada em
Setembro de 1941 foi repetida diariamente. A selecção fazia-se por vezes dentro
dos comboios: alguns prisioneiros eram destinados aos trabalhos forçados ou,
por exemplo, a experiências médicas, outros mandados directamente para as
câmaras de gás.
Depois de se despirem, iam
para a câmara de gás dotada de duches e tubagens, o que lhes dava a impressão
de se tratar de um banho. Primeiro deixavam-se entrar as mães com os filhos,
depois os homens. Quase sempre a operação desenrolava-se com tranquilidade,
porque os presos do Sondercommando (grupos de presos obrigados a trabalhar nos
fornos crematórios como ajudantes) conseguiam convencê-los de que se tratava de
uma desinfecção.
Segundo Rudolf Hoess, era a
maneira mais eficaz e mais humana de solucionar a questão judia. "Os que
estavam perto dos orifícios por onde se introduzia o gás morriam de imediato.
Era quase um terço. Os demais começavam a gritar, amontoavam-se, arquejavam.
Contudo, rapidamente o grito transformava-se num gemido. Passados 20 minutos,
quando muito, já ninguém se mexia. No entanto, por vezes levantavam-se
problemas: uma mulher aproximou-se de mim e, apontando os seus quatro filhos
que estavam de mãos dadas, perguntou-me: "`Como vais matá-los?'. Vi outra
mulher que, no último momento, tentou empurrar o filho pequeno para fora da
câmara. Não conseguiu".
A roupa e outros objectos
de utilidade deixados pelos condenados às câmaras de gás eram enviados ao III
Reich. Grupos especiais de presos estavam encarregados de revistar o vestuário
e os corpos para encontrar dinheiro, ouro e jóias. Os relógios eram enviados
para o campo de Sachsenchausen, onde eram seleccionados e reparados se valesse
a pena. Depois serviam de oferta para soldados alemães e funcionários nazis.
Hoje em dia, no cemitério
de Auschwitz, podem contemplar-se milhares de óculos, dezenas de milhares de
escovas, pentes e pincéis. Uma sala inteira está cheia de pratos e travessas.
Noutra amontoam-se milhares de sapatos. Uma pequena parte do que deve ter
restado de centenas de milhares de homens, mulheres e crianças, gaseados e
queimados nos fornos crematórios de Auschwitz-Birkenau.
Chegada de mulheres e crianças ao campo de extermínio.
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Estatísticas macabras
O número de vítimas continua a ser objecto de fortes polémicas. Os poucos documentos que ficaram depois da evacuação do campo pelos alemães foram confiscados pelas tropas soviéticas. Uma comissão de investigação, dirigida pelo general soviético Dimitri Kudriavtsev, baseou-se nestes documentos e nas declarações dos presos, assim como na capacidade teórica das câmaras de gás e dos fomos crematórios. Esta última calcula-se em mais de cinco milhões de pessoas.
O número de vítimas continua a ser objecto de fortes polémicas. Os poucos documentos que ficaram depois da evacuação do campo pelos alemães foram confiscados pelas tropas soviéticas. Uma comissão de investigação, dirigida pelo general soviético Dimitri Kudriavtsev, baseou-se nestes documentos e nas declarações dos presos, assim como na capacidade teórica das câmaras de gás e dos fomos crematórios. Esta última calcula-se em mais de cinco milhões de pessoas.
Contudo, os cientistas
tiveram que tomar em consideração as avarias e as pausas tecnológicas
necessárias para o funcionamento correcto dos fomos.
Durante muitos anos
considerou-se como definitivamente certo um número superior a 4 milhões, onde
se incluíam dois milhões e meio de judeus. O ex-comandante de Auschwitz, Rudolf
Hoess, executado em 1947 ao lado de um dos fomos crematórios, afirmou durante a
investigação que o número total de presos não havia ultrapassado os dois
milhões e meio.
Segundo as últimas
investigações realizadas pelo cientista polaco Franciszek Piper, o número de
prisioneiros registados oficialmente no campo cifrou-se em 400 mil. Contudo, a
maioria dos judeus trazidos para Auschwitz para serem gaseados imediatamente
nunca foram registados. O seu número eleva-se a 900 mil.
Segundo Piper, o número
total de prisioneiros que "passaram por Auschwitz" eleva-se a 1
milhão e 300 mil. Desses, 1 milhão e 100 mil morreram ou foram assassinados. Em
todo o caso, asseguram os investigadores, o número de vítimas mortais do
conjunto Auschwitz- Birkenau não ultrapassou um milhão e meio.
Quando se entra em Oswiecim
pela estrada do norte, começa-se por se ver anúncios de oficinas, fábricas e
lavandarias. Apenas ao lado da estação ferroviária se encontra a primeira
tabuleta que indica o caminho para o "Museu de Auschwitz". Não há,
contudo, qualquer problema para se chegar lá. Qualquer pessoa, inclusive
crianças pequenas, sabe onde fica "o museu". Não falam do campo.
"Não é possível recordar constantemente ", afirmam.
Tradução de Aida Macedo
Texto originalmente publicado no Expresso, a 28 de janeiro de 1995, por ocasião do 50º aniversário da libertação de Auschwitz
Ler mais: http://expresso.sapo.pt/oficio-de-matar=f908141#ixzz3Q35ycJa6