As primeiras eleições em que as portuguesas adultas puderam votar sem restrição aconteceram a 25 de abril de 1975 - ARQUIVO DIÁRIO DE NOTÍCIAS |
No regime deposto em 1974, nada na lei distinguia já
brancos de negros ou de qualquer outra etnia. Mas as mulheres tinham um
estatuto de semipessoas
"O que é que sei do estatuto da mulher antes do
25 de Abril? O que me vem à cabeça é a mulher subalterna, sempre em casa. O
marido é que aparece. Muito poucas mulheres com cursos superiores... E direito
de voto não sei, mas tenho a ideia de que as mulheres só puderam votar depois
de 1974." Carolina Nogueira, 18 anos, está no primeiro ano de Direito na
Universidade de Lisboa. Do que se lembra, no liceu não aprendeu grande coisa
sobre este assunto. "Hei de ter dado alguma coisa, mas assim muito pela
rama. Somos confrontados com aqueles clichés tipo não haver direito de voto,
pouco mais."
E não seria pouco, se fosse só isso: as mulheres
apenas tiveram direito de voto universal nas primeiras eleições pós-25 de
Abril, em 1975. Ao contrário dos homens, que desde 1945 podiam votar mesmo se
analfabetos, elas só tinham acesso às urnas com o equivalente ao curso de liceu
(ou seja, o que é hoje a escolaridade mínima obrigatória) ou se fossem
"chefes de família" (por viuvez ou marido ausente), desde que com "idoneidade
moral" (a quem competiria certificar tal qualidade?). E mesmo
"instruídas" perdiam o direito se casadas com um marido com
capacidade eleitoral.
Mas há muito mais de que Carolina, pelos vistos, nunca
soube. Nem na escola, até agora, nem por ninguém. Daí que fique sem fala quando
descobre que até 1975 o Código Penal português consagrava os "crimes de
honra", permitindo que um marido ou pai matasse a mulher adúltera ou as
filhas menores de 21 se "corrompidas" sem mais castigo do que seis meses
de desterro da comarca (na mesma pena incorria a mulher que matasse o marido
e/ou a amante mas apenas se este introduzisse aquela na "casa de
família"). "É chocante. E é muito estranho mesmo que nunca nos falem
disso. É um bocado repugnante até há tão pouco tempo uma coisa dessas existir
na lei. Gostava de ter sabido disso antes, era importante para mim. Se não se
fala disso por desvalorização é muito grave."
Prostituir esposa dava multa
No curso está a estudar o Código Civil, mas ainda não
chegou à parte da família, onde se concentraram as alterações dizendo respeito
às mulheres. "Vários dos professores chamam a atenção para o facto de o
código ser maioritariamente ainda o de 1966, feito no tempo de Salazar, e não
ter nenhum erro." Maneira de ver. O Código Civil de 1966 estabelecia por
exemplo que os maridos tinham o direito de abrir a correspondência das mulheres
(o equivalente hoje a terem acesso obrigatório à password do computador e do
telemóvel para bisbilhotar à vontade), norma que só caiu em 1976, e que eram
eles os "chefes de família". Longe de ser só um título, esta
certificação legal, que só desapareceu em 1978, significava que os maridos
detinham a autoridade sobre as mulheres e seus bens, que podiam administrar
como entendessem, e também sobre os filhos. Dependia deles autorizar que as
esposas tivessem determinadas atividades profissionais (comércio, por exemplo)
e decidir unilateralmente sobre a educação das crianças; a mulher tinha apenas
o direito "de ser ouvida", cabendo-lhe, por lei, "o governo
doméstico".
Estava igualmente estabelecido no Código Civil que
"a falta de virgindade da mulher ao tempo do casamento" podia ser
motivo de anulação do mesmo (a experiência sexual prévia do noivo só poderia
implicar anulação se se provassem "costumes desonrosos antes do
casamento"). E decretava-se que a mulher deveria "adotar a residência
do marido", exceto se lhe fosse reconhecida "justificada repugnância
pela vida em comum, por virtude de maus tratos" ou de "comportamento
indigno ou imoral" dele. Os "filhos ilegítimos" - conceito
abolido na democracia - eram matéria para todo um capítulo.
Já no Código Penal, se o adultério deixou de ser crime
em 1973 (era até aí punido com prisão maior, de dois a oito anos, no caso da
mulher; no do homem só pressupunha pena de multa e apenas no caso de este
introduzir a amante na "casa conjugal"), subsistiu até à Revolução
não só a citada atenuação da pena de homicídio mas também uma pena especialmente
branda para o lenocínio quando se tratava de um marido a prostituir a mulher -
era apenas desterro, multa e perda de "direitos políticos por 12
anos".
Proibidas de se casar e julgar
Escândalos que Carolina irá procurar nos livros, agora
que ouviu falar deles. A historiadora Irene Pimentel, 65 anos, costuma
deparar-se com esta ignorância sempre que vai a escolas falar sobre o Estado
Novo. "Os miúdos não sabem praticamente nada, mas têm uma enorme
curiosidade. Sobretudo elas, nota--se muito mais a curiosidade delas. Abrem a
boca enquanto falo." Ri--se. "O que as choca mais é os maridos terem
de dar autorização às mulheres para elas poderem sair do país. Isso mudou só
com o marcelismo [de Marcelo Caetano, sucessor de Salazar como Presidente do
Conselho, ou primeiro-ministro], em 1969, e por causa da emigração." É uma
das alterações pré-25 de Abril, como a efetuada no texto da Lei Fundamental.
"Na Constituição de 1933 afirmava-se que não havia distinção entre as
pessoas em função do sexo, mas logo a seguir acrescentava-se: "salvas,
quanto à mulher, as diferenças resultantes da sua natureza e do bem da
família." A parte da natureza caiu na revisão de 1972, ficou só o bem da
família", comenta a historiadora. "E o que fez mudar isso foi a ida
de uma mulher para subsecretária de Estado. Foi a primeira mulher no
governo."
Outras normas discriminatórias - a da proibição de as
telefonistas se casarem e interdição igual para as enfermeiras, hospedeiras da
TAP e funcionárias do Ministério dos Negócios Estrangeiros, assim como a
necessidade de autorização especial para o casamento das professoras -
vigoraram desde o final dos anos 1930 até à década de sessenta, sendo a última
proibição, a das enfermeiras dos hospitais civis, levantada em 1963, depois de
debates acalorados na Assembleia Nacional. "Não se percebe sequer porque é
que as enfermeiras não haviam de se poder casar, porque havia médicas e elas
podiam", comenta Irene Pimentel, que lembra outra norma modificada ainda
sob Salazar: "A minha mãe é suíça, e com o casamento com o meu pai,
português, perdeu a nacionalidade. Isso só deixou de suceder em 1959."
Comenta que a mãe nunca deu por tal, porque nesse período viajou sempre com o
marido. Aliás, tal como hoje, a maioria ignora a dimensão e intensidade da
discriminação das mulheres que vigorou antes da democracia, à época muita gente
não tinha consciência das desigualdades estatuídas. Desde logo porque não eram
denunciadas publicamente; e porque a inferioridade em relação aos homens seria
aceite por muitas mulheres sem questionamento, e ainda por o número daquelas
que se defrontavam diretamente com uma parte das normas ser pequeno: por
exemplo, da interdição de acesso às carreiras da magistratura e da diplomacia,
que só desapareceu em 1974, tinham consciência sobretudo as que, com
habilitações para tal, se viam barradas.
Portuguesas de segunda
Irene Pimentel suspira. "É de relevar que o
estatuto de "português de segunda", aposto aos portugueses nascidos
nas colónias, assim como o indigenato, acabou ainda nos anos 1950. Mas as mulheres
ficaram portuguesas de segunda até 1976." E 40 anos, sublinha, é nada.
"Espantoso como a memória e o debate sobre isto não existe. Porque não há
coisa comparável, em termos históricos, à discriminação sobre as mulheres, que
até são a maioria da população. E este silêncio sobre a realidade brutal da
discriminação também explica que se reaja tão mal à palavra feminismo. Como se
não fizesse sentido." Conclui: "Sem dúvida que a grande revolução do
25 de Abril é a mudança do estatuto da mulher em termos jurídicos. O que,
claro, não é nada a mesma coisa que a prática."
Fernanda Câncio in http://www.dn.pt/portugal/interior/a-grande-revolucao-esquecida-do-25-de-abril-5142798.html