terça-feira, 26 de dezembro de 2017

Um texto lindíssimo de Jorge de Sena



"Como um presente de Natal, um texto lindíssimo de Jorge de Sena", assim escreveu Diana Andringa na sua pg de Facebook.

Vou partilhá-lo aqui no meu blogue. É fantástico!



Super Flumina Babylonis

A ascensão da estreita escada escura, e tão a pino, com os degraus muito altos e cambaios, era, sempre que voltava a casa, uma tortura. À força de equilíbrios, meio encostado à parede, cuja cal já se esvaíra havia muito e até nas suas costas, e apoiando em viés uma das muletas no extremo oposto do degrau de cima, ia subindo cuidadosamente, num resfolegar de raiva pela lentidão. Toda a unção adquirida na conversa com os frades de S. Domingos, a cujas prelecções regularmente assistia, ficando depois a discretear com eles, se perdia naquele regresso a casa, ao fim da tarde, e mal se recompunha no repouso à janela, sentado no banquinho baixo, comido o caldo, e ruminando memórias e tristezas, enquanto a velha mãe prosseguia intermináveis arrumos pontuados de começos de conversa, a que respondia com sorrisos e distraídos monossílabos ou com frases secas em que ripostava mais a si próprio que a ela mesma. Às vezes, ela insistia, repetindo um comentário, por uma resposta sua. Mas mesmo essa insistência não significava comunicação efectiva: ela apenas pretendia tranquilizar a própria consciência e o seu dó do filho envelhecido e doente, que a vida destruíra, com algumas palavras que lhe dirigisse, simulando uma conversa que não o deixasse entregue, perigosamente, aos solitários pensamentos, onde é sabido que o Inimigo especialmente se insinua. E não era dos pensamentos que ele tinha medo, mas dos vazios cada vez maiores que, entre os pensamentos, se faziam. Quando ela lhe falava, e sobretudo quando ela insistia, precisava não se deixar distrair pelas palavras que ouvia: ou logo, no fio interrompido das ideias que continuamente deslizavam como um rio revolto, se abria um vácuo tenebroso, um vórtice sombrio em que flutuavam farrapos de versos e de coisas vistas, e, mais no fundo, como que uma pequenina porta iluminada, ou um vidro posto sobre estranhas águas em que nadavam esquisitos seres, e que parecia um olho fito nele, pestanejando ou palpitando, não sabia bem, talvez que, sim, nem mesmo um olho, mas uma transparência marinha como os reflexos das ondas ao luar. A pequenina porta, que lhe fazia vertigens, nem sempre se mostrava. Na maior parte das vezes não havia mais que o poço em que se debruçava, ansioso de que a portinha se abrisse e tremente até ao arrepio pela frialdade que dela vinha. Fechando os olhos, cerrando-os com bastante força, conseguia então afugentar aquelas visões» ou aquela visão, sempre a mesma, que sonhava acordado. Porque dos sonhos tinha ódio. Pensar, devanear, lembrar, imaginar, mesmo supor como tudo poderia ter sido numa vida triunfante e num outro mundo, não era sonho, mas a certeza de que existia, de que as coisas se arrumavam por sua vontade, que a ordem delas e do Mundo era um desconcerto que ele organizava mentalmente. Quando dormia, não sonhava nunca. Não eram sonhos as coisas que então via, mas a continuação do mesmo poder e da mesma certeza, ou então tentações do demónio, como diziam os padres. Mas as tentações ele conhecia bem.. Não eram tentações da sua alma que Deus não deixaria que se perdesse nunca, a não ser naquele vórtice estranho onde parecia que Ele não penetrava. Como tentações? Que tentação era ter nos braços uma mulher que lhe escapara? Que tentação era matar, dormindo, um inimigo poderoso e inacessível? Que tentação era ver-se feliz num palácio, rico, respeitado, rodeado de servos e de admiradores, com uma mesa farta de bons petiscos e de bons vinhos, e com saúde e vigor para uns jogos de armas ou para uma bela amante pescada na rua, todos os dias uma diferente? Que tentação ver-se na Corte, com bom gibão de veludo e a gola de finas rendas, ouvindo os elogios dos seus pares, e recitando ou lendo o último poema escrito? Não eram tentações estas coisas, não, mas consolações piedosas da sua alma, a satisfação do que lhe fugira, a plenitude do que não tivera, a saciedade do que não bastara, a conquista do que jamais pudera ter sido seu. Pecado é sonhar com o futuro: desejar a mulher que se viu neste instante, querer com fúria o que é dado a outros, invejar furiosamente, como coisa que nos foi roubada, a felicidade alheia que está dançando, sem vergonha e sem respeito pela nossa miséria, diante dos nossos olhos que param a vê-la. Mas imaginar-se feliz no passado, com aquilo que fugidiamente o perpassara, e não fora nunca do tamanho da sua fome, não era tentação, não era um pecado, era, sim, a sua única riqueza, a sua única razão de esperar a morte, seco de amor, exangue de entusiasmos, descrente da pátria, destituído até da alegria de fazer versos. Os seus versos, agora, haviam-no abandonado. Haviam-se desfeito, como açúcar, no rio ininterrupto do pensamento, aonde antigamente flutuavam de súbito, como pedaços de ardente gelo, que um a um se atrelavam para dar um poema. E não tinha deles saudade alguma. Não fora nunca para si próprio que os escrevera. Para os outros, sim. Para que o ouvissem, para que o admirassem, para que o entendessem, para que vissem como tudo, na vida, tinha um sentido exacto que só ele era capaz de achar, uma arquitectura que não teria tido sem ele, uma beleza que não existe senão como a ideia que primeiro é pensada por quem é digno dela.
Empurrou a porta, e entrou. Contra o costume, a mãe não lhe apareceu, nem ele sentiu na casa ruído algum. Fechou a porta, foi até à mesa, e sentou-se na cadeira, encostando as muletas. Sentar-se era um alívio do cansaço, e uma nova tortura também. Mas a ausência da mãe, tão inabitual, tornou menos tortura a tortura de sentar-se ajeitando as partes inchadas e doloridas, acto que, com uma vergonha infinita, era obrigado a fazer diante dela, e que por isso não ajeitava bem, sentindo os olhos da velhinha fitos nele, horrorizados com a monstruosidade dos castigos reservados a quem se entrega aos pecados da carne, sem se manter puro como veio ao mundo. Ela, que, quando o marido voltava de uma viagem, só deixava que ele a beijasse depois de ter a certeza que não havia desembarcado em porto algum, desde muitos meses… Suspirando, sorriu para si mesmo. Na primeira viagem que fizera, ao embarcar-se para a Índia, ainda derrancado das orgias de noites consecutivas, destinadas a prevenir-se para tanto tempo de céu e mar e de conversa de homens, ele… Benzeu-se. Estas memórias eram tentações da carne. E nisso estava a diferença da poesia que escrevera na vida. Umas vezes escrevera na verdade para saber o que pensava. Mas outras vezes escrevera para possuir efectivamente, como, quando era moço, repetia de seguida o acto do amor, não porque desejasse, mas para sentir melhor que possuía, para ter a certeza de que possuía mesmo a marafona de que se esquecera durante a primeira vez. Agora, assim alquebrado e impotente, tudo o que pensava, se o escrevesse, lhe parecia que era só desta poesia que pecava contra o Santo Espírito, e que não era uma dádiva, uma oferta do seu corpo ao corpo em que entrava, mas uma rapina, uma avareza, uma maneira de devorar o próximo. E mesmo de tudo o que escrevera lhe parecia incerto que o tivesse sido abnegadamente, já que sempre ansiara pelo reconhecimento alheio, pelo triunfo, pela glória, pelos prémios, a ponto de contentar-se com o sorriso constrangido dos ignorantes a quem lia os poemas.
Levantou o olhar para a janela. No prédio fronteiro, viu o calafate sentado à mesa, que o observava amigavelmente por cima da escudela fumegante. Acenou-lhe de cabeça, e o outro fez com a mão um gesto largo, que terminou apontando o caldo numa oferta gentil. Correspondeu com um gesto como que de adeus, e desviou a vista. À varanda vieram encostar-se as duas crianças; não precisava de fitar Para saber. Nunca gostara de crianças, nunca pensara em tomar estado para tê-las suas. Talvez por isso mesmo é que tanto ou tudo da sua poesia ficara como aqueles filhos que não quisemos ter, e que depois se despegam de nós adivinhando um desapego de que nos arrependemos, mas que não deixa de ser um desapego mesmo arrependido. O amor para ele fora carne e espírito, tão carne, que nenhum espírito podia estar presente, e tão espírito, que nem toda a carne do mundo, usada dia e noite, chegava para contentá-lo. Até o fastio, que às vezes o afastava longamente de contactos carnais, era uma ardência insatisfeita, que se continha, suspensa e ameaçadora, à espera de esquecer que a carne era sempre igual, e os gestos do amor tão poucos que os sabia já de cor. Mas depois, ao fazê-los, era sempre, como na primeira vez, uma surpresa, uma ignorância curiosa, um receio tímido, uma insegurança doce, um pasmo juvenil, uma alegria nova, um encantamento frenético; era como na primeira iniciação, mas sem a perplexidade e a decepção de o amor não ser mais do que isso, quando a virtude do amor não está em ser mais do que é, mas em ser o prazer de não ser isso mesmo.
Novamente ergueu os olhos para a varanda fronteira. As crianças não estavam lá, e o homem, curvado para a escudela, comia o seu caldo. Aquele mistério da Encarnação, o frade hoje falara muito bem, explicando com eloquência o seu sentido. Mas o sentido da Encarnação não precisava ele que lho explicassem. Quem amara com a carne e com o pensamento como ele, quem escrevera do Amor como ele escrevera, e quem não gostara nunca de crianças, como ele, tinha da Encarnação uma experiência que o frade não tinha. Precisamente porque tudo se encarnara nele sem encarnar-se, e lhe devorara a própria carne, deixando-o aquele farrapo imundo que era agora, quem melhor sabia o que era a Encarnação? Ou, pelo menos, tanto quanto um homem pode sabê-lo? Sentir-se grávido de um poema, sentir-se fecundado por um relâmpago entrevisto, e ser um homem — é o mais que pode saber-se. Não o sabe a mulher que dá à luz, porque é delas dar à luz, às vezes sem ter amado. Não o sabe o homem que quer ter filhos, porque os pode fazer sem amor. Mas o poeta que praticou o amor até à destruição da carne, e escreveu poemas até que o espírito acha pouco a poesia, esse, sim, esse sabe o que Encarnação seja. Apenas, porém, o sabe. Mas não viveu a Encarnação, foi a Encarnação quem o viveu a ele. E é este o grande mistério, não o outro. E é a grande diferença entre um deus que se encarna, e o homem em quem a Encarnação se representa. Uma diferença que é, afinal, uma comédia, ou pode ser vista como uma comédia, porque todo o homem a quem isso aconteça é Anfitrião, um marido enganado pelo Júpiter que há nele.
Ficou vendo diante de si o palco iluminado, e as figuras declamando os versos. A porta rangeu, e os passinhos leves soaram atrás dele. A voz fininha e aguda começou a sua declamação desafinada.
— Esteve hoje cá o Padre Manuel à tua procura, e eu disse-lhe que hoje era dia de ires a São Domingos, e ele disse-me que não se tinha lembrado, e eu perguntei-lhe quando voltava, e ele respondeu que precisava perguntar-te do teu livro, mas não era pressa, voltava noutro dia, ou tu fosses procurá-lo amanhã ou depois. Que é que ele anda a fazer com o teu livro, sempre a perguntar-te coisas? Então um livro desses, que não é de coisas de Deus Nosso Senhor e da nossa santa religião, precisa que tu estejas sempre a explicar o que é isto e o que é aquilo, e a contar a tua vida, nem que ele fosse o teu evangelista? A Virgem Santíssima me perdoe, mas parece-me um grande pecado. E contar a vida às outras pessoas é um grande pecado da vaidade. A vida conta-se ao padre confessor, e faz-se a penitência que ele manda pelas nossas más palavras e obras, e pronto. E, à hora da morte, a gente conta o que ainda lembra ou fez entretanto, e o padre dá a absolvição, se fomos virtuosos e piedosos, e nunca faltámos aos nossos deveres para com Deus e a sua Igreja. Ah, veio também o criado do Senhor Rui Dias, do mando deste senhor, que tão teu amigo é, perguntar pela encomenda que te fez daquelas poesias del-rei David que Deus haja. E eu disse que tu ainda não acabaste e que logo acabas, e que tens trabalhado muito e até tens estudado com o Padre Manuel para que as palavras santas fiquem todas certas e nos seus lugares. E ele disse que o amo estava muito arreliado contigo, que havia mais que muitos meses que tinha feito a encomenda, e que tu não fazias nada, e que já tinha pago adiantado uma parte do trabalho. E eu disse que era verdade, que ele já tinha pago, mas que nestas coisas pagar adiantado alguma coisa é como dar o pano ao alfaiate, porque o alfaiate não pode fazer o gibão sem o pano, e tu não podias escrever sem comer. E disse-lhe que a tua tença estava atrasada e que não a pagavam, e que eu esperava muito da bondade do seu amo e do grande poder que lá tem no Paço que a tença fosse paga em dia, que bem a tinhas merecido de Sua Alteza pelos muitos serviços de teu pai que Deus tenha em descanso, e também pelos teus serviços, que se tinhas sido um rapaz sem juízo, e não tiveste sorte na vida, também eras um homem que escrevia livros, e sabias muitas coisas divinas e humanas, como o Senhor Padre Manuel me disse, e Frei Bartolomeu escreveu na licença que te deu…
— Frei Bartolomeu só disse que eu sabia muito de coisas humanas.
— Pois é. Porque saber de coisas divinas tu podias ter aprendido se tivesses estudado a valer, e tido juízo, que podias hoje até ser bispo e mais do que eles dois. Mas meteste-te com más mulheres e más companhias, e hoje é isso que se vê, e, em vez de seres tu a dar as licenças, és tu quem as vai pedir a eles. Se não fossem teus amigos e tu não lhes moesses a paciência, e não mostrasses como és um homem arrependido da má vida que teve, não ta davam, que isto de frades, Nossa Senhora me perdoe, se alguém me ouve. O teu pai é que se ria deles, e dizia que eram todos uns vadios, que só queriam comer e ter as mulheres dos outros. Abrenúncio, e por isso Deus o castigou com aquela desgraçada morte, que nem teve sepultura cristã. Mas tu podias ir procurar o Senhor Duque ou o Senhor D. Manuel, e lembrar-lhes que a tua tença está atrasada, e eles não há que não consigam, de tão grandes senhores que são, primos del-rei. Eu tive de sair para visitar a nossa comadre Joaquina que está outra vez com a sua dor e não tem ninguém que cuide dela, mas logo lhe disse que não podia demorar-me, porque hoje era dia de ires a São Domingos santificar a alma, que bem precisas, e logo voltavas com fome e querias a tua ceia, e ficavas aborrecido se eu não estivesse em casa quando chegasses, para te dar o caldo, e ela respondeu que não eras nenhuma criança que chorasse pelo peito da mãe, e eu disse-lhe que tu nunca tinhas chorado pelo peito da tua mãe, e é verdade também porque eu te dava logo de mamar mal tu abrias a boca para gritar. Mas que nunca choraste para mamar é a verdade, e só choravas depois, porque o meu leite era fraco e foi preciso trazer uma ama, e o teu pai queria que tu fosses criado com ama, porque não era da nossa condição que tu fosses criado ao peito de uma senhora como eu, esposa de um homem como ele, tudo gente de condição. Mas a condição que nós tínhamos era só o que ele ganhava, e Deus sabe como eu vivi depois que teu pai faltou e tu andavas lá por essas terras de gentios e de infiéis, por tanto tempo e eu sem saber se eras vivo ou morto, e só sabia quando chegavam as armadas e vinha alguém conhecido que me dava notícias tuas, e me dizia que tu tinhas ido para aqui e para ali, ou estavas não sei onde, que para mim todas aquelas Índias são o mesmo, e os nomes das terras são mesmo coisa do demónio, cruzes, de arrenegados para se entenderem. Muitas vezes eu pensava que me escrevias, mas tu nunca escrevias, e muitas pessoas me diziam que tu lá escrevias as cartas dos outros, que escrever bem tu sempre escreveste desde muito pequeno] mas punhas as coisas bonitas no papel para eles, e para mim nada. E eu ficava rezando a Sant’Ana e a Nossa Senhora e às vezes até mudava de santo para que nenhum se cansasse de me ouvir, sempre temendo que morresses nas guerras e nos naufrágios, ou dessas doenças que há lá, e a pensar que às vezes eu podia estar a rezar pela tua boa sorte e as rezas afinal servirem para te descontar os dias de Purgatório pelos teus pecados e leviandades, e o corpo que eu dei à luz estar comido dos peixes ou do gentio, sem sepultura cristã, como teu pobre pai que Deus haja e eu só soube tanto tempo depois. E a comadre Joaquina deu-me este pastel que aqui trago e que é de uma galinha que lhe deu a vizinha, ou uma meia galinha só, de que ela fez este pastel, e me disse que tinha outro e que te mandava este, mas queria que tu lhes escrevesses uma oração em verso a S. Crispim de que é muito devota, e eu disse que tu havias de escrever depois de comeres o pastel.
— Eu como o pastel, mas versos aos santos não faço.
— Deus meu, se alguém te ouve e pensa que tu não acreditas nos santos. A Santa Inquisição que nos livrou da maldade e da malícia dos inimigos da nossa Fé manda que se acredite nos santos, e eu bem sei que tu não acreditas, nunca te encomendas a eles, e é por pecado de orgulho, ao que me disse o Padre Manuel, quando eu lhe falei da minha aflição por tu não acreditares nos santos, e ele me respondeu que tu achas os santos pequenos de mais para ti, e não te contentas senão com Deus Nosso Senhor. Eu até fiquei arrepiada de pensar no perigo que é não ter um santo que nos proteja. Se não fossem o Senhor Duque e o Senhor D. Manuel e o Senhor Rui Dias e outros senhores assim, eu queria ver de que é que tu vivias, que el-rei nem saberia da tua existência. Deus me perdoe, mas não é que Deus não saiba de ti, porque ele sabe de todos nós e é um pai amantíssimo que não tira os olhos de nós. Mas está na sua divina majestade, ocupado em reger o Mundo, e nunca ninguém ganhou causas sem advogado. A mim a Senhora Sant’Ana nunca me desampara, eu nem sei o que seria de mim e de ti sem ela. Que este pastel é um milagre dela. Quando eu saí para visitar a comadre Joaquina, ia dizendo comigo que a Senhora Sant’Ana fizesse que eu não voltasse para casa com as mãos vazias e trouxesse algum petisco para o meu filho, e pedi mesmo um pastel de galinha, que era o mais certo, porque a comadre Joaquina sempre tem pastéis de galinha. E eu não prometi à Senhora Sant’Ana que tu farias o que a comadre pedisse, porque já te conheço, e não há contar contigo para coisa nenhuma que não seja comer o pastel. E por isso não faz mal que não faças os versos a S. Crispim, porque não foi promessa minha. A comadre é que disse que tu, se quisesses, podias fazer, que toda a gente dizia que eras muito bom dizedor, e que fazias logo os versos que te pediam. E eu respondi que isso seria dantes, porque agora tinhas uma encomenda muito boa, de grande rendimento, do Senhor Rui Dias, que nos fazia a honra de ser teu amigo, de pôr em verso os Salmos del-rei David que Deus haja, e que tu não escrevias nada, e até hoje o criado dele cá estivera a reclamar por causa do pagamento adiantado. Tu estás a dormir, tu não ouves o que eu digo? Come o teu caldo enquanto está quente e depois o pastel que é bem gostoso se for igual ao outro que a comadre tinha. Eu já ceei em casa dela, e estou sem apetite só de ver-te nesse estado, um rapaz tão forte e tão bonito como tu eras, que não havia moça que não se voltasse para te ver, nem homem que não se mordesse de inveja. E, quando o sol dava no teu cabelo, eu dizia comigo que o meu filho era como um rei com a coroa na cabeça, ou, Deus me perdoe, como um grande santo de resplendor dourado em dia de procissão. E ficava a ver-te ir pela rua abaixo, tão vaidoso que nem olhavas para trás, com a mão no punho da espada, e os passos tão firmes, Deus meu, que parecia que a terra era toda tua. Por essas e por outras é que as tuas desgraças começaram, com as arruaças e as brigas, e o mau feito, desgraça maior que todas, de acutilares o homem em Dia de Corpus Christi, aquele patife sem vergonha que te desgraçou e fez ir para a Índia e que merecia morrer em pecado, Deus me perdoe se sou eu quem peca. Está tão escuro já que vou acender a candeia. Mas o lume apagou-se e vou descer à vizinha a pedir-lhe lume. Deus Nosso Senhor tenha piedade de mim, velha e cansada, e com um filho homem, e sou eu quem tem de descer a escada para buscar o fogo que não há na minha casa. Abriu o olhar às trevas e ao silêncio. Conhecia tão bem os cantos da quadra, que era como se estivesse vendo a arca e o oratório com o raminho entalado, os quadrinhos de santos pendurados, a prateleira com os pratos em pé, a enxerga ao canto, onde ele dormia, a porta da alcova de sua mãe e a porta da cozinha. Via tudo com a mesma certeza e a mesma minúcia com que vira as naus do Gama navegando no mar, lá em baixo, vistas do Empíreo, com que vira Vénus abraçada a Júpiter e chorando, com que vira o Adamastor sair da nuvem grossa, com que vira o Veloso correndo pelo monte abaixo. Mas ele acutilara o Borges, porquê? Para que a vida lhe mudasse de rumo, para que ela tomasse um rumo de fatalidade, para que as índias lhe fossem impostas pela sua estrela, para que a sua estrela existisse. Erros meus, má fortuna, amor ardente, em minha perdição se conjuraram, os erros e a fortuna sobejaram, que para mim bastava amor somente. Perdição. Amor somente. Como a poesia é falsa e verdadeira. Como ela diz não dizendo, e é não dizendo que diz. Como da nossa alma não sabemos nada antes de escrevê-la, e como não é dela que sabemos depois de ter escrito. A perdição procura-se, como um homem se despe para banhar–se no mar, a modos que Leandro atravessando o Helesponto. E o amor somente bastaria, como o momento em que tudo se esquece, tudo desaparece, tudo se evapora, ao calor que abrasa e que só dura um instante mas um instante em que o tempo se suspende, se petrifica num espaço e numa forma, e todo o verdadeiro espaço foge velozmente, correndo pelos tempos fora até que é ele o tempo que se suspendeu. Apenas como isso, porque é uma imagem do supremo amor, aquele que existe além do tempo e do espaço, além das esferas, além daquele poço terrível. Além ou aquém? E se esse amor não fosse mais do que uma imagem, uma essência última da sua própria vida?
Estranhamente, no silêncio e no fluxo dos pensamentos, o poço abriu-se insólito e translúcido na sua profundeza negra, com as pequeninas formas flutuantes, e uma subia, subia, tomando cor e feições de uma medusa terrífica. Mas a porta rangeu, e uma vaga claridade fez emergirem os objectos, como formas planas, sem sombras na luz fraca. Os passinhos soaram leves.
— A vizinha diz que, no intervalo antes de tu chegares, quando eu já tinha saído, veio cá também aquele doutor que te pediu as poesias para aquele senhor que não tem nome cristão, o Senhor D. Leonis. Hoje veio cá todo o mundo, até parece o Dia de Juízo. E ele que vai de viagem ficou com muita pena de não te ver, e disse-lhe que te deixava muitas lembranças e que queria muito que tu melhorasses de saúde, e ela respondeu que tu estavas mesmo muito acabado, e ele disse que tu não acabavas nunca, porque tu eras um grande poeta, um dos maiores que já tinha havido no mundo, assim uma coisa como nem sei quem ele disse. E ela riu-se muito, e disse-lhe que o Senhor Padre Manuel também dizia o mesmo, e que era tudo bondade deles, porque isso de poesias nunca davam nada a ninguém. Só que a ti deram a tença, mas foi por causa do livro impresso e pelos muitos serviços a el-rei que o teu pai prestou em sua pobre vida, e tu também. E ele respondeu que era sempre assim que as coisas aconteciam, que a glória só vinha muito tarde, e que os prémios, quando eram dados, nunca vinham pelo que a gente merecia mais. Eu acho que isto é descrer da infinita bondade de Deus Nosso Senhor, e não é muito respeitoso para com Sua Alteza que te deu a tença. O que é preciso é que tu vás ao Paço reclamar que não te pagam a tempo e horas, que estou cansada de me arrastar até lá, e sempre me perguntam porque tu não vais, e o outro dia o tesoureiro até me disse que era tudo história, que não ias porque tinhas morrido, e eu, se queria receber, tinha de pedir a el-rei a tença em meu nome. E tu não vais porque tens esse pecado de orgulho, e não queres que te vejam de muletas, a pedir que te paguem o que te devem. Eu é que estou cansada, e vou-me deitar que não posso mais comigo. Tem cuidado com a candeia, não gastes muito azeite, que está pela hora da morte, e bem sabes que tenho medo dos fogos e podes adormecer aí na mesa, não era a primeira vez, e a candeia pegar fogo à tua papelada, e à casa, Deus nos acuda e Santa Bárbara nos proteja. Se voltar cá o criado do Senhor Rui Dias, o que é que lhe digo? Nem me respondes, estás a cair de sono em cima da mesa. Tem cuidado com a candeia… Ficou olhando as chispinhas delicadas que a candeia fazia, como uma auréola à volta de um centro ardente. Se o criado de Rui Dias lhe aparecesse, ou ele mesmo, diria que, noutro tempo, era mancebo, farto e namorado, querido e estimado, e cheio de muitos favores e mercês de amigos e damas, com que o calor poético se aumentava, e que agora não tinha espírito nem contentamento para nada… Seriam 365 versos, tantos quantos os dias do ano, como uma via sacra da vida, 73 quintilhas como…
Levantou-se impelido por uma ânsia que lhe cortava a respiração, uma tontura que multiplicava a pequenina luz da candeia. Apoiado à mesa, arrastou-se até à outra ponta, e daí deixou-se cair até à enxerga. Remexendo nela, tirou de um canto umas folhas de papel, o tinteirinho, com a pena enfiada no anel, que se habituara, desde o primeiro embarque, a guardar assim. De joelhos, com as dores neles e nas partes aumentando muito agudas e em picadas de que cerrava os dentes, veio até à mesa, pousou nela o que trazia, e levantou-se. Ficou um momento, de olhos fechados, arquejando. Já as palavras tumultuavam nele, confundidas com as outras, inúteis e mortas, da tradução que tentara. Eram como uma tremura que o percorria todo de arrepios, com hesitações leves, concentrando-se em pequenas zonas da pele. Debruçando-se da mesa a que se apoiava, puxou para o seu lado a cadeira, e caiu sentado nela. Sentia um suor frio escorrer-lhe pela testa, e, ao abrir o tinteiro, viu que as costas das mãos brilhavam perladas. Uma onda de alegria o inundou, em sacões ansiosos. Os olhos ardiam-lhe e era de lágrimas. Tudo falhara, tudo, e a própria poesia o abandonara, receosa dos seus olhos de alma penetrantes que viam o fundo das coisas. O poço com as formas flutuando. Mas era um grande poeta, transformava em poesia tudo o que tocava, mesmo a miséria, mesmo a amargura, mesmo o abandono da poesia. Tremendo todo, mas, com a mão muito firme, começou a escrever… Sobre os rios que vão de Babilónia a Sião assentado me achei… Riscou, desesperado. Recomeçou. Sobre os rios que vão por Babilónia me achei onde sentado chorei as lembranças de Sião e quanto nela passei…
E ficou escrevendo pela noite adiante.


Araraquara, 27 de Março de 1964.

A democratização dos textos primeiros da cultura portuguesa: O acontecimento editorial do ano



Com a devida vénia transcrevo o artigo de Beja Santos que saiu no programa "Vida Alternativa" da Rádio Zero:


Esperei até meados de Dezembro para avaliar a importância dos projetos editoriais mais relevantes. De tudo quanto apareceu no mercado livreiro nada se aproxima das “Obras Pioneiras da Cultura Portuguesa”, com direção de José Eduardo Franco e Carlos Fiolhais, edição do Círculo de Leitores, início em 2017, projeto de fôlego, constituído por 80 obras em 30 volumes. O que aqui se dá à estampa são textos e documentos que revelam o pioneirismo em Portugal nos domínios da arte, ciências exatas e ciências humanas, na literatura, na música e noutros domínios do conhecimento. Falamos do mesmo Círculo de Leitores que anos atrás publicou pela primeira vez em Portugal todas as obras do padre António Vieira, empreendimento grandioso que estranhamente nem uma menção ou prémio recebeu. Este projeto envolveu um grande exército, 174 elementos entre investigadores, coordenadores dos volumes, consultores nacionais e internacionais, envolveu universidades nacionais e internacionais, centros de investigação e academias. Um labor sem precedentes e com resultados surpreendentes: os textos de todas as obras foram transcritos, fixados e criteriosamente atualizados a partir das suas versões primeiras.
Trinta volumes com uma seleção dos primeiros textos em português, de história, heráldica edificação moral e crónica biográfica, viagens e descobrimento, ética social e política, geografia e ecologia, e muitíssimo mais. É um registo admirável de 800 anos de história comum, estão aqui os fundamentos que podem permitir uma maior amplitude para o conhecimento da cultura portuguesa, ao alcance do chamado leitor médio., que em circunstância alguma teria acesso a estes textos primigénios. A propósito deste projeto, Carlos Fiolhais esclareceu numa entrevista o que há de transcendente nesta articulação entre a produção cultural e a ciência na história de Portugal: “Os Descobrimentos Portugueses dos séculos XV e XVI constituíram um prelúdio da Revolução Científica, que se deu no século XVII, com Galileu, Newton e outros grandes nomes. No empreendimento marítimo dos portugueses, que pode ser considerado uma primeira globalização, estavam já presentes a observação e a experiência, fundadas na curiosidade, que haveriam de presidir à Revolução Científica. Os portugueses encontraram novas terras, novas espécies minerais, zoológicas e botânicas e novas gentes, com culturas assaz distintas, e souberam reportar o que viram e o que viveram. Alguns instrumentos científicos introduzidos por cientistas seiscentistas, como o telescópio e o relógio mecânico, foram introduzidos na Índia, na China e no Japão pelos navegadores lusos. O mesmo se passou com os conhecimentos matemáticos, astronómicos e físicos do Ocidente, que foram nalguns casos traduzidos para línguas orientais. Mais tardem, no Iluminismo, ocorreu em Portugal uma ressuscitação da Ciência. E foi nessa altura que foram escritos em português os primeiros tratados de anatomia, de física, de química e de engenharia, que não estavam muito desfasados de obras similares que então surgiram noutras línguas nacionais”. O meso investigador dirá mais adiante que “a nossa preocupação foi mesmo oferecer os originais, pedindo a especialistas uma introdução integradora e as notas explicativas necessárias. Cada época histórica tem direito a uma leitura renovada dos textos fundadores da sua cultura e estava na hora de dar aos portugueses e a outros interessados um acesso fácil a esses textos, de modo a que pudessem fazer um juízo atualizado”.
No prefácio ao primeiro livro destas obras pioneiras, e dedicado a cantigas trovadorescas, prosa literária e documentação instrumental, os coordenadores lembram a dificuldade que existe em encontrar nas livrarias edições contemporâneas das obras dos sábios do Renascimento português, que se traduzia numa perda de autoestima cultural, classificado por muitos como o “atraso português”. E esclarece a organização dos 30 volumes, para aguçar o apetite aos leitores. E não se esquecem de anunciar a contingência deste projeto, a seleção não é definitiva nem completa, nele não entraram mais obras das disciplinas aqui representadas, e deixam uma mensagem para um projeto futuro: “Seria interessante fazer uma outra série com obras pioneiras de boa parte dos séculos XIX e XX, de modo a abarcar as áreas do saber que emergiram nessa época, nomeadamente as ciências naturais, a sociologia, a psicologia, a antropologia, a ciências políticas, entre outras”.
Falando dos primeiros textos em português, constata-se a preocupação em enquadrar o leitor quanto à seleção dos textos, situando a lírica, as suas origens, os poetas, as cantigas de diferentes tipos e temas, a prosa literária e os testemunhos escritos que têm a ver com compras-vendas, permutas, doações, testamentos, arrendamentos, e algo mais. O leitor será surpreendido pela beleza das cantigas profanas, pelas cantigas de Santa Maria, pela prosa literária e por um conjunto de documentos que registam a matriz da língua. Lê-se com emoção a cantiga de amigo “Eu, velida, não dormia” onde aparece uma expressão de todo enigmática “Edoi lelia doura”, que Herberto Helder escolheu para título de uma antologia de poesia portuguesa por ele organizada, entende-se que essa expressão era proveniente do árabe e significaria “hoje é a minha vez”. E é bem português o testamento de D. Afonso II, com data de 1214, que assim começa: “Eno nome de Deus. Eu rei don Afonso pela gracia de Deus rei de Portugal, seendo sano e salvo, temente o dia de mia morte, a saude de mia alma e a proe de mia molier reina dona Urraca, e de meus filios, e de meus vassalos e de todo meu reino, fiz mia manda per que, depois mia morte, mia molier e meus filios e meus vassalos e meu reino e todas aquelas cosas que Deus me deu en poder sten en paz e en folgancia”.
Há muitas décadas atrás, havia um recurso para suprir, com seríssimas lacunas, estas obras pioneiras, líamos alguns dos Clássicos da Sá da Costa, de saudosa memória. Este projeto é do maior alento, é um ambicioso grande arco sobre a nossa língua e a vastidão dos nossos conhecimentos.
Para um acontecimento editorial desta grandeza, o nosso agradecimento é coisa menor, um importante é chegar à biblioteca de todos nós.

Beja Santos, December 15th, 2017









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Hannah Arendt. A passagem por Lisboa a caminho da liberdade

A casa onde viveu, em Lisboa

Hannah Arendt

Sem pátria durante mais de duas décadas, a filósofa alemã refugiou-se em Lisboa, em 1941, até conseguir partir para os Estados Unidos. Os deputados do Livre na assembleia municipal propuseram agora que se assinale a casa onde Hannah Arendt viveu. Para que não se esqueça o passado e se reflicta no presente.

Talvez muitos não saibam da curta estada de Hannah Arendt por Portugal. Fugida da França ocupada pelo nazismo, a filósofa, judia e alemã, chegou a Lisboa, em Janeiro de 1941, acompanhada pela mãe e pelo marido, o poeta Heinrich Blücher. Estatuto: refugiada. 
Os deputados do Livre na assembleia municipal querem que se perpetue a passagem da filósofa por Lisboa. Por isso, na reunião de terça-feira daquele órgão, apresentaram uma recomendação à câmara municipal, que foi aprovada por unanimidade, para que a casa onde Hannah Arendt viveu na capital, entre Janeiro e Maio de 1941, seja identificada com uma placa ou um pequeno monumento. Para que se celebre a obra vasta da filósofa, para quem ser alemã e judia, com um pensamento livre das amarras do regime, se revelou uma combinação perigosa. 
Ainda antes de chegar a Lisboa, em 1933 e com 27 anos, as perseguições aos judeus e o seu envolvimento numa organização sionista obrigaram Arendt a fugir da Alemanha, depois de ter sido presa. Hitler ascendeu ao poder, a filósofa acabou por ir parar a Paris, cidade que havia de ser tomada pelos nazis em 1940. Foi colocada num campo de internamento, uma espécie de campo de refugiados, mas conseguiu fugir.
Como destino tinha os Estados Unidos, para onde havia de conseguir fugir em Maio de 1941 (e onde acabaria por morrer, em 1975). Mas não sem antes passar por Lisboa, como tantos judeus, e se estabelecer numa casa, no número 6 da rua da Sociedade Farmacêutica, hoje na freguesia de Santo António, que desemboca junto à entrada traseira do Hospital de Santa Marta, no coração da cidade.  
Este é hoje um edifício recuperado, de linhas sóbrias, amarelado, e com quatro andares que parece manter-se destinado à habitação. A fachada é rasgada ao centro por varandas balaustradas em ferro. Não fossem os azulejos verdes, na base, o painel de azulejos azuis e brancos no coroamento da casa, e a cabeça de cavalo acima da porta da garagem, e o edifício passaria despercebido entre os outros. 
“É uma questão simbólica porque Hannah Arendt é uma das maiores filósofas do século XX”, refere o deputado do Livre, Paulo Muacho, ao PÚBLICO. “Com o drama dos refugiados que continua bastante presente, e sem resolução à vista, e todos os ataques aos direitos humanos a que temos assistido, consideramos que era importante manter a memória daquilo que se passou no passado e do que esta figura da Hannah Arendt representa”, continuou. 
Também  ela foi apátrida durante mais de duas décadas, quando a Alemanha lhe retirou nacionalidade e a privou, por isso, dos seus direitos fundamentais. O que, para ela, era o “fundamental ”, diz Hermenegildo Borges, professor de Teoria Política na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa. 
“Andar de terra em terra, sem direitos, sem o direito de cidadania, que para ela é fundamental, essa experiência limite de privação dos direitos, levou-a a perceber que havia a necessidade de refundar o pensamento político”, acredita o professor, perante a “fragilidade da racionalidade ocidental que se pensava livre, democrática”.
Foi essa vulnerabilidade vivida em Lisboa, e em outras cidades da Europa e dos Estados Unidos, que terá inspirado uma das mais relevantes obras da filósofa, o manifesto “Nós, Refugiados”.
“Foi um pensamento reflexivo sobre uma experiência de sofrimento que ela viveu. Não foi uma construção intelectual. Ela viveu a falência do ocidente, [a ascensão] do totalitarismo nazi, do fascismo e do estalinismo, numa altura em que estava em marcha a consolidação da democracia”, Hermenegildo Borges. 
“Acho esta recomendação do Livre extremamente pertinente”, admite o professor. Porque o seu pensamento talvez esteja mais actual agora do que há 60, 70 anos, admite, e porque “muitos dos seus receios se confirmam no momento presente”. 
“O direito a ter direito é o direito de cidadania”
Para o docente, a filósofa deixou-nos o “desafio constante” de estarmos “permanentemente em controlo”, vigilantes, para que não haja desvios de regimes democráticos. Porque os perigos e ameaças continuam, não sob a forma de regimes totalitários, como a história os descreveu, mas sob a forma de “ataques terroristas ou do radicalismo islâmico”, elenca. Assim como a escalada da violência, o renascimento de nacionalismos e do extremismo de direita, os radicalismos a sobreporem-se aos ideais democráticos, a crise dos refugiados. 
“Imagine as pessoas que atravessam o Mediterrâneo e chegam sem documentos à Europa. Elas têm a dignidade da pessoa humana, mas enquanto não adquirem o direito de cidadania andam a ser enjauladas, atrás de muros”, aponta Hermenegildo Borges. “O direito a ter direito é o direito de cidadania. Sem cidadania não posso aspirar a ter direitos humanos”, completa. 
O grande “desafio contemporâneo” que Hannah Arendt nos deixa, atira o professor, é o de “sermos capazes de integrar os que chegam e vivermos em comunidade com diferentes credos, culturas, num espaço que é defendido com fronteiras rígidas”, e ter a consciência de que “a diversidade faz riqueza e que a homogeneidade faz pobreza”. 
“O património comum da humanidade é uma riqueza”
As questões da ecologia e do desenvolvimento sustentável eram já fundamentais no pensamento de Hannah Arendt, nota o professor, e vêm ao encontro das “necessidades contemporâneas”. 
“O homem só habita a Terra se a transformar artificialmente, para seu conforto. O homem não consegue viver na Natureza tal como ela nos foi dada. O homem tem que construir pontes, casas, esgotos, carros, comboios, auto-estradas”, explica. Só que “a vontade do homem de transformar o mundo não deve esgotar os recursos da Terra”. 
É preciso caminhar, portanto, para uma “sociedade qye não provoque o esgotamento dos recursos, que não polua nem destrua pela vontade de criar riqueza”, refere o professor, dando imediatamente o exemplo da decisão do presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, de retirar o país do Acordo de Paris sobre as alterações climáticas. “São [acordos] essenciais à sobrevivência do planeta e isso só mostra que Trump ainda não aprendeu com a lição da Hannah Arendt”.
Por isso, a perda de património comum, como “a destruição de estátuas, de monumentos, de coisas antiquíssimas, é uma perda para a humanidade extraordinariamente grande", considera o professor. “Só podemos fruir do ar puro se todos os países do mundo se regerem pelo mesmo princípio da não poluição”, exemplifica. 
Segundo explica Hermenegildo Borges, Hannah Arendt elege como condição humana fundamental a “pluralidade”. “Não é o homem sozinho, branco, que habita o mundo. É uma diversidade de povos de culturas. É o homem no seu plural”, para lá dos temperamentos de cada um. 
Além da identificação da casa, assinalando a passagem da filósofa, o deputado Paulo Muacho admite que o partido gostaria de propor também a criação, naquela zona, de um largo que ficaria o nome da filósofa. Onde, quem sabe, se pudessem discutir estas questões que são globais, começando por nos lembrarmos sempre, remata Hermenegildo Borges, que “de cada vez que cai uma bomba sobre uma biblioteca de Bagdad é a destruição de alguma coisa que é minha, que é de todos nós" que está a acontecer.

https://www.publico.pt/2017/12/23/local/noticia/hannah-arendt-a-passagem-por-lisboa-a-caminho-da-liberdade-1797052

Enquanto a receita xenófoba der votos, é preciso coragem para fazer como Emmanuel Macron ou Angela Merkel


Bom Natal!

Enquanto a receita xenófoba der votos, é preciso coragem para fazer como Emmanuel Macron ou Angela Merkel. 1. Angela Merkel e os seus pares europeus têm direito a umas merecidas férias nesta época natalícia que as sociedades europeias, livres, prósperas e relativamente justas, gozam “religiosamente”. Aliás, é melhor que recuperem forças, porque 2018 vai ser um ano em que muita coisa se joga sobre o futuro dos europeus e sobre o lugar que a História dará aos seus líderes.
 A chanceler continuará a ser decisiva, mesmo que a opinião pública alemã a veja com um olhar bastante mais crítico do que é vista, ironia das ironias, por muitos governos europeus.

O Natal é tempo de esperança e, talvez por isso, ainda acredito no vaticínio de Wolfgang Munchau, colunista do Financial Times, quando, no auge da crise, manifestou algum optimismo com um argumento aparentemente imbatível: Merkel não vai querer ficar na História como a chanceler que veio do Leste para destruir a União Europeia. Fará o que for preciso ao mais baixo custo e no último momento. Mas fará. Espera-se que aproveite o seu último mandato para fazer mais do que igualar os 16 anos que Helmut Kohl esteve no poder.

Com a sua quarta vitória consecutiva, ainda que bem mais modesta, e com o fracasso da “coligação Jamaica”, alguma imprensa internacional, da Spiegel ao Wall Street Journal, começou a escrever-lhe o obituário político. Porventura cedo de mais. Precisa de um bom acordo com o SPD e os sociais-democratas vão ter de baixar um pouco o tom para que isso seja possível. A chanceler sempre justificou a forma como geriu a crise do euro, impondo uma austeridade cega aos infractores do Sul, com duas preocupações de longo prazo: impedir o nascimento de um partido de extrema-direita na Alemanha, justamente o país onde a sua existência seria mais perturbadora; ter em atenção a catastrófica demografia alemã, contendo a despesa pública e abrindo as portas a gente vinda de fora para colmatar a baixíssima taxa de natalidade e garantir as pensões e a prosperidade.
Os estudos sobre a demografia europeia, mantendo-se as tendências actuais, indicam que a França e o Reino Unido vão aumentar a sua população nas próximas décadas, ultrapassando a Alemanha, que verá uma redução acentuada. Pode dizer-se que a chanceler falhou num destes objectivos, com a entrada no Bundestag de um partido de extrema-direita, elegendo 95 deputados. No outro, o resultado é misto. A chegada de um milhão de refugiados vindos da guerra da Síria e de outros conflitos nas fronteiras da Europa, aos quais a chanceler abriu as portas com generosidade mas também com racionalidade, acabou por criar-lhe o seu maior problema político.

 2. A vitória de Macron, com um programa assente na defesa convicta da Europa e de tudo o que ela representa, foi uma alma nova, mas não chegou, como se tem visto, para estancar a vaga populista e xenófoba que atravessa a Europa, com altos e baixos, mas muito longe ainda de regredir. É a alma da integração europeia que está em causa: o nacionalismo ou a abertura aos outros; a xenofobia ou a capacidade de integrar; o regresso das fronteiras ou a pergunta de Monnet sobre essa linha imaginária a que chamamos fronteira, que torna inimigos os que estão de um lado e do outro. Hoje, a Polónia é o lugar onde esse confronto de ideias se trava de forma mais visível. A resposta europeia é tudo menos fácil. A maioria qualificada necessária para a aplicação de sanções ao Governo de Varsóvia, por sistemática e persistente violação das regras do Estado de Direito, pode ser anulada por um veto, que Budapeste garante que utilizará. O fenómeno identitário regressou quase sem o vermos chegar. Com uma força com que não contávamos. A instabilidade passou a ser o estado natural das democracias europeias, o que é normal perante a crise que a Europa viveu e a transformação acelerada que o mundo está a viver. Nada poderia continuar como dantes. A questão é saber como controlar esta transição sem pôr em causa aquilo que é essencial. Não estamos em modo de Estados Unidos da Europa, como o líder social-democrata alemão, Martin Schulz, se lembrou de reclamar. Mas não podemos ficar indiferentes perante o regresso de uma ideologia identitária e nacionalista que, como diz Joschka Fischer numa entrevista à Spiegel com uma brutalidade invulgar, os alemães conhecem demasiado bem. “Sabemos como este filme termina.” O que vai acontecer na Polónia é ainda uma incógnita. Dispensa-se qualquer arrogância iluminada de Bruxelas. Frans Timmermans, vice-presidente da Comissão, não foi por aí. Apelou em vez de exigir. Explicou em vez de ditar. Uma boa novidade. Mas, de repente, os males que devoraram a Europa na primeira metade do século passado ousam exprimir-se na praça pública sem qualquer espécie de vergonha. É isso que é perturbador. É isso que dificulta a análise e nos faz hesitar sobre as palavras que devemos aplicar. Populismo? Bom e mau? Nacionalismo? Extrema-direita? Direita radical? Exageramos ou subestimamos? São os mesmos demónios que assolaram a Europa, só que com uma patine “civilizada”? Ou forças radicais que não põem em causa a democracia?

 3. Na Áustria, Sebastian Kurz, o líder dos sociais-cristãos que ganhou o título de “rapaz maravilha” graças aos seus 31 anos de idade, formou uma coligação de governo com o “Partido da Liberdade” (um nome que me custa sempre escrever), xenófobo e populista que, há bem pouco tempo, ainda se declarava antieuropeu (exigia um referendo como o britânico) e que agora, aparentemente, se rendeu ao europeísmo moderado do novo chanceler. Herdeiro do velho partido de extrema-direita de Joerg Haider que assustou a Europa em 2000, ainda que expurgado das referências anti-semitas e nazis do seu fundador, não pode ser visto como um partido que partilhe os valores universais de que a integração europeia é portadora, porque não havia nem há outro modo de a conseguir. A sua cartilha política é a do costume: contra os imigrantes, em particular os islâmicos, indo ao encontro do que pensam muitos eleitores. E nem se pode dizer que a culpa é do centro-direita de Sebastian Kurz. Perante os resultados eleitorais, que lhe deram a vitória (32%) contra um pouco mais de 27% para os sociais-democratas, que lideraram a “grande coligação” que governou Viena nos últimos anos, o líder do centro-esquerda também tentou uma coligação com a extrema-direita. A Áustria recebeu um grande número de refugiados da Síria, que atravessaram o chamado corredor balcânico. Muitos ficaram na fronteira, que o Governo encerrou, outros conseguiram chegar ao “paraíso” alemão e outros, ainda, ficaram. O Estado social austríaco continua a ser bastante generoso. Os austríacos bastante menos. Há pequenos sinais inquietantes. Por exemplo, o novo Governo de Viena quer oferecer às populações de língua alemã que vivem desde a guerra no Tirol italiano a nacionalidade austríaca. Por que carga de água? Kurz moderou a proposta do seu parceiro de coligação, dizendo que só o fará em negociação com o governo italiano. O líder da extrema-direita, Heinz-Christian Strache, também segue o padrão dos seus congéneres europeus em matéria de amizades internacionais: não esconde a sua inclinação por Putin. Mais uma vez, Kurz aceita uma versão mais moderada: tentará levar os seus parceiros europeus a levantar as sanções contra a Rússia.

 4. Enquanto a receita xenófoba der votos, é preciso coragem para fazer como Emmanuel Macron ou como Angela Merkel. É por isso que ambos estão hoje tão fortemente ligados pela mesma responsabilidade política de defender a moderação, a tolerância e a abertura ao mundo que ditará o destino da Europa. É por isso, também, que países como Portugal, até agora imunes ao contágio da xenofobia e do nacionalismo, ganham uma nova responsabilidade política, como se viu com a escolha de Mário Centeno para presidir ao Eurogrupo. Não foi só cumprir as metas do défice. Foi também a compreensão desse papel de moderação política e da criação de alternativas capazes de encontrar um terreno comum.


 5. Apenas uma nota final. A vitória de Inés Arrimadas nas eleições da Catalunha é o retrato perfeito da autêntica democracia europeia: uma andaluza, casada com um separatista catalão, que representa um partido de centro liberal e que não tem medo de defender o que pensa. O “independentismo” dos ricos não é um fenómeno novo. A Liga Norte da Lombardia, uma das regiões mais ricas da Europa, também não quer pagar para o Sul de Itália, muito mais pobre. No fundo, é mais ou menos a mesma coisa, mesmo que em Barcelona tenha a marca da esquerda radical e em Milão da velha direita nacionalista. Tenhamos esperança.



 Teresa de Sousa tp.ocilbup@asuos.ed.aseret - Jornal PÚBLICO

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