segunda-feira, 26 de dezembro de 2016

Jorge de Sena e o Natal


Natal de quê? De quem?
Daqueles que o não têm?
Dos que não são cristãos?
O de quem traz às costas
as cinzas de milhões?
Natal de paz agora
nesta terra de sangue?
Natal de liberdade
num mundo de oprimidos?
Natal de uma justiça
roubada sempre a todos?
Natal de ser-se igual
em ser-se concebido,
em de um ventre nascer-se,
em por amor sofrer-se,
em de morte morrer-se,
e de ser-se esquecido?
Natal de caridade,
quando a fome ainda mata?
Natal de qual esperança
num mundo todo de bombas?
Natal de honesta fé,
com gente que é traição,
vil ódio, mesquinhez,
e até Natal de amor?
Natal de quê? De quem?
Daqueles que o não têm,
ou dos que olhando ao longe
sonham de humana vida
um mundo que não há?
Ou dos que torturam
e torturados são
na crença de que os homens
devem estender-se a mão?


Jorge de Sena


José Fanha (org.)
De palavra em punho
Porto, Campo das Letras, 2004

Einstein fala sobre o AMOR


O texto que se segue é uma carta póstuma, na qual Einstein fala sobre o AMOR, dedicando-a à sua filha Lieserl.

O AMOR
“Quando propus a teoria da relatividade, muito poucos me entenderam, e o que lhe revelarei agora para que o transmita à humanidade, também se chocará contra a incompreensão e os preconceitos do mundo. Peço-lhe mesmo assim, que o guarde o tempo todo que seja necessário, anos, décadas, até que a sociedade haja avançado o suficiente para acolher o que lhe explico a seguir.
Existe uma força extremamente poderosa para a qual a ciência não encontrou ainda uma explicação formal.
É uma força que inclui e governa todas as outras, e que está inclusa dentro de qualquer fenômeno que atua no universo e que ainda não foi identificada por nós.
Esta força universal é o Amor.
Quando os cientistas buscam uma teoria unificada do universo, esquecem da mais invisível e poderosa das forças.
O amor é luz, já que ilumina quem o dá e o recebe.
O amor é gravidade porque faz com que umas pessoas sejam atraídas por outras.
O amor é potencia, porque multiplica o melhor que temos e permite que a humanidade não se extinga no seu egoísmo cego.
O amor revela e desvela. Por amor se vive e se morre.
Esta força explica tudo e dá sentido em maiúscula à vida.
Esta é a variável que temos evitado durante tempo demais, talvez porque o amor nos dá medo, já que é a única energia do universo que o ser humano não aprendeu a manobrar segundo seu bel prazer.
Para dar visibilidade ao amor, fiz uma simples substituição na minha mais célebre equação. Si no lugar de E=mc² aceitamos que a energia necessária para sanar o mundo pode ser obtida através do amor multiplicado pela velocidade da luz ao quadrado, chegaremos à conclusão de que o amor é a força mais poderosa que existe, porque não tem limite.
Após o fracasso da humanidade no uso e controle das outras forças do universo que se voltaram contra nós, é urgente que nos alimentemos de outro tipo de energia.
Se quisermos que nossa espécie sobreviva, se nos propusermos encontrar um sentido à vida, se desejarmos salvar o mundo e que cada ser sinta que nele habita, o amor é a única e última resposta.
Talvez ainda não estejamos preparados para fabricar uma bomba de amor, um artefato bastante potente para destruir todo o ódio, o egoísmo e a avareza que assolam o planeta.
Porém, cada individuo leva no seu Interior , um pequeno mas poderoso gerador de amor cuja energia espera ser liberada.
Quando aprendermos a dar e receber esta energia universal, querida Lieserl, comprovaremos que o amor tudo vence, tudo transcende e tudo pode, porque o amor é a quintessência da vida.
Lamento profundamente não ter sabido expressar o que abriga meu coração, que há batido silenciosamente por você toda minha vida.
Talvez seja tarde demais para pedir-lhe perdão, mas como o tempo é relativo, preciso dizer-lhe que a amo e que graças a você, cheguei à ultima resposta.
Seu pai,
Albert Einstein”


in http://www.resilienciamag.com/potencia-do-amor-por-einstein-um-texto-maravilhoso/

sexta-feira, 23 de dezembro de 2016

Natal, paz, harmonia

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Feliz Natal!
Paz para o mundo inteiro. 
Um abraço fraterno muito especial para tod@s os que sofrem os horrores da guerra e da indiferença.



Nazaré Oliveira

Cada amigo nosso vale mais que um Pai Natal


OS AMIGOS

Quem faz o Natal para todos nós? São os amigos
Quem nos dá prazer e dá calor? São os amigos
A quem é que damos a ternura? É aos amigos
A quem é que damos o melhor? É aos amigos
.
Os amigos são o nosso bolo de Natal
Cada amigo nosso vale mais que um Pai Natal
É um irmão nosso que trabalha no Natal
E com suas mãos faz a diferença do Natal
.
O dinheiro pouco importa
O que importa é a verdade
E a prenda mais valiosa
É a prenda da amizade
.
Quem faz das tristezas forças
E das forças alegrias
Constrói à força de Amor
Um Natal todos os dias.


ARY DOS SANTOS e JOAQUIM PESSOA

*Ilustração de ©Steve Cox

sexta-feira, 9 de dezembro de 2016

Leni Riefenstahl - o cinema ao serviço da propaganda nazi


A cobra

1 de Dezembro de 1933. Enquanto Portugal comemora o primeiro feriado da Restauração da Independência sob o manto do Estado Novo, Leni Riefenstahl dá início, com a projecção do filme A Vitória da Fé na enorme e importantíssima sala de cinema berlinense Ufa-Palast am Zoo, a uma das mais interessantes e duradouras discussões sobre a ética da estética. Nos últimos dias, através do YouTube (o canal em que perco mais tempo desde a transmissão na RTP2, tinha eu 13 anos, da telenovela Pantanal), visualizei novamente a obra da cineasta a quem chamo “a cobra”. E, como seria de esperar, voltei a assustar-me! 
Passemos às explicações: tenho medo de cobras, quase fobia; no entanto, estranhamente (ou talvez não, a psicologia e a antropologia garantem ter explicações para o facto), raras vezes resisti a visitar os reptilários dos zoológicos ou mesmo aquelas exposições itinerantes de gosto duvidoso que trazem animais exóticos às nossas cidades. Com os filmes de Leni Riefenstahl é a mesma coisa. Sei que se trata de propaganda nazi e que me vou sentir desconfortável, mas, de vez em quando, lá sou apanhado pela minha mulher a olhar com ar envergonhado para um homem de bigodinho toothbrush a berrar entre archotes e suásticas. 



Apaixonada pelas artes desde a infância, Leni Riefenstahl pintou, escreveu e dançou antes de se entregar ao cinema

O fascínio exercido pela estética totalitária, da arquitectura de Albert Speer às esculturas soviéticas de Vera Mukhina, é um bom exemplo de um trabalho bem feito, uma vez que a ideia era mesmo essa: fascinar. Como indica o título do ensaio que Susan Sontag escreveu em 1975 sobre Leni Riefenstahl, há, de facto, um fascinating fascism; e este está sempre pronto para “morder” os incautos.



EXPO 1937 e a mania das grandezas da Alemanha Nazi (pavilhão da esquerda) e da União Soviética (pavilhão da direita)

Aprofundemos então, como verdadeiros herpetólogos, a história da “cobra”. Nascida em 1902, entra na 7ª arte pela porta da interpretação, participando como actriz em várias películas do “cinema alpino alemão”. A fama que procurava, incluindo a internacional, apareceu rapidamente. Este estilo – o filme de montanha –, muito famoso na Alemanha de Weimar, mostrava esquiadores e trepadores em heróicas batalhas contra uma natureza grandiosa e fotografada de modo espectacular. À distância, consegue-se identificar neste género um idealismo, entusiamo e espírito anti-racionalista que já não anunciava nada de bom.



Leni em 1929 no “filme de montanha” O inferno branco de Piz Palü 

Os estúdios alemães, com a produtora UFA à cabeça, eram nessa época uma “fábrica de sonhos” de nível mundial (provavelmente a única rival de Hollywood), onde realizadores brilhantes tais como Ernst Lubitsch ou F. W. Murnau tinham lançado algumas das suas obras-primas, ainda hoje presentes no panteão das glórias do cinema. 

Metropolis (1927) de Fritz Lang, uma produção da UFA

Nos anos 30, com a aproximação e chegada de Hitler à Chancelaria, fogem da Alemanha um grande número de actores e directores (o realizador Fritz Lang e a actriz Marlene Dietrich são os nomes mais famosos de uma extensa lista), mas tal não afectou em nada o ímpeto cinematográfico do regime.
Mal tomou posse como Ministro da Propaganda, Goebbels ordenou às empresas americanas de filmes com instalações na Alemanha que despedissem todos os colaboradores de raça judia. Em seguida, reuniu as principais figuras do sector para lhes indicar quais os filmes que seriam apoiados pelo Reich. Nesse encontro, deu alguns exemplos de filmes que admirava e cujos exemplos deveriam ser seguidos pela Indústria. O Couraçado Potemkine, de Sergei Eisenstein, foi um dos mais dissecados. 
Realizado em 1925, conta a história do motim ocorrido em 1905 a bordo do navio de guerra Potemkin, quando a tripulação se revolta contra os oficiais da Marinha Czarista. A transposição para o cinema deste facto histórico da Rússia pré-revolucionária deu origem a um filme duplamente famoso: pelas técnicas usadas tornou-se num marco histórico da sétima arte; pelo contexto em que foi apresentado ficou registado na história da propaganda. Joseph Goebbels considerava O Couraçado Potemkin um filme soberbo e declarava que “qualquer pessoa que não tivesse convicções políticas fortes podia transformar-se num Bolchevique depois de o ver”. E, acrescento eu, se essa visualização ocorresse às 8 da noite, no fim de um dia de trabalho, o momento identificado pelos psicólogos nazis da sua equipa como mais propício para persuadir uma alma, talvez se transformasse até num sósia do próprio Lenine.
O filósofo Walter Benjamim, conhecido por ter escrito um dos ensaios com melhor título de sempre (A Obra de Arte na Era da sua Reprodutibilidade Técnica), descreveu o fascismo como “a estetização da política”. De facto, num dos primeiros manuais de propaganda produzidos pelo Partido Nazi, no final dos anos 20, existe um capítulo específico dedicado à utilização das artes, da pintura ao cinema, passando pela fotografia, literatura, teatro, escultura, música e arquitectura. E a lição foi tão bem aprendida que durante os 15 anos seguintes, entre obras produzidas anteriormente e obras encomendadas para esse efeito, pouca coisa escapou ao abraço propagandístico. Foi feita a apologia de uma “nova interpretação” dos pintores do romantismo alemão (Caspar David Friedrich, principalmente), da arquitectura do Império Romano (Hitler descreve-a no Mein Kampf como um símbolo de poder), da literatura de Friedrich Nietzsche, e da música clássica alemã (suspeita-se que as peças de Wagner foram usados em Dachau com o objectivo de “reeducar” prisioneiros). Hitler dizia que “pelo uso sagaz e contínuo da propaganda, um povo até pode ser levado a confundir céu com inferno, ou vice-versa”, e o seu omnipresente ministro da pasta gabava-se de conseguir provar, através da repetição e da manipulação psicológica, que “um quadrado é na realidade um triângulo”. Assim sendo, como é fácil de ver por estas frases, valia tudo!



A “força” da música de Wagner faz parte do imaginário popular: Woody Allen fez humor com o assunto, dizendo que ouvir Wagner lhe dava vontade de conquistar a Polónia, e, em Apocalypse Now, o “excêntrico” Bill Kilgore utiliza a Cavalgada das Valquírias para motivar as suas tropas e exercer guerra psicológica sobre o inimigo

Assim que conquista o poder, Hitler dirige-se à jovem cineasta Leni Riefenstahl dizendo-lhe que gostaria que o filme A Vitória da Fé (que seria filmado em Nuremberga no ano de 1933, durante o 5º congresso do partido) fosse feito por um artista; o führer queria algo que transcendesse o vulgar documentário e via nela esse talento. A admiração era mútua, uma vez que ela o via como um orador brilhante, capaz de hipnotizar qualquer pessoa (mais tarde, muitos usariam essa desculpa para justificar a adesão ao nazismo).  
A convenção de 1933, cenário da rodagem da produção, contou com a participação de mais de trezentas mil pessoas, entre os camisas-castanhas das SA de Röhm, os camisas-negras das SS de Himmler, forças armadas convencionais e cidadãos em geral. O projectista-chefe do comício foi Speer, o arquitecto do regime, que transformou Nuremberga num palco de teatro. O seu projecto institucionalizou a “estética fascista”, muito embora a maioria dos elementos (marchas, archotes, bandeiras) tivessem saído da imaginação de Goebbels. Leni e Speer idealizaram uma iluminação baseada em holofotes de cinema e um palco elevado que seria fundamental para o tipo de filmagem executada – sempre de baixo para cima, mantendo Hitler no alto e distante. Leni confessou que pretendia “impressionar de uma forma arrebatadora”.



Hitler e Ernst Röhm aparecem várias vezes juntos n´A Vitória da Fé, o que levou a que quase todas as cópias do filme fossem destruídas pelos nazis após a queda em desgraça do líder das SA (Röhm foi executado em 1934 durante a purga da “noite das facas longas”)
 
       Embora Leni sempre se tenha referido ao seu trabalho como puro documentário, a organização e filmagem de cenas depois do encerramento do comício não deixam grandes dúvidas quanto ao carácter do filme. Speer voltou a criar o cenário de Nuremberga num estúdio e certos discursos voltaram a ser gravados com nova iluminação. Alguns jovens bem-parecidos das SA e das SS foram filmados e incluídos posteriormente como parte da reacção aos discursos. Tudo isto é referido por Speer nas suas memórias, publicadas em 1969 (Por dentro do III Reich).




 Riefenstahl a dar ordens a membros do partido Nazi durante as filmagens d´A Vitória da Fé. Uma mulher entre homens, que não era para brincadeiras (dizem as más-línguas que por ter as “costas bem quentes”)  

        A imprensa alemã glorificou A Vitória da Fé como um “documentário triunfante”, que mostrava a transição do Partido para o Estado, mas o jornal inglês London Observer não foi em cantigas: caracterizou-o como “uma longa apoteose do espírito cesarista” que mostra bem “o espírito intoxicante que se vive na Alemanha por estes dias”. É de realçar que os ingleses sabiam do que falavam: uns anos antes, durante a Guerra dos Boers, utilizaram diversos filmes para promover a sua causa, sendo alguns dos quais filmagens documentais genuínas e outros meros filmes forjados!  
       O filme de Riefenstahl foi visto por vinte milhões de alemães, entre projecções em salas de cinema, escolas, ginásios e salões comunitários. Na altura talvez tenha parecido arrasador e assustador, mas 16 meses depois, passou a concorrer, em termos de inocência, com as fitas de Walt Disney! No dia 28 de Março de 1935 estreia em Berlim O Triunfo da Vontade,mostrando ao mundo que A Vitória da Fé não tinha passado de um simples “ensaio”. Sobre esta produção megalómana Goebbels é peremptório: “quem tenha visto e sentido o rosto do führer n´O Triunfo da Vontade nunca o esquecerá. Há-de persegui-lo nos dias, nos sonhos, na vontade, como uma chama silenciosa, queimando no interior da alma”.
        A realização foi planeada durante meses e contou com recursos praticamente ilimitados, concedidos directamente por Hitler. O próprio Goebbels sentiu-se ultrapassado pela relação directa entre os dois. A equipa de produção era constituída por quase 200 pessoas e incluía fotógrafos aéreos, consultores de propaganda do Partido e uma equipa de som de 13 pessoas! Um grupo de trabalho desta dimensão não tinha precedentes em qualquer parte do mundo. A conhecida frase de Orson Welles – “um escritor precisa de uma caneta, um pintor de um pincel e um realizador de um exército” – podia ter sido dita para retratar este projecto.


O Triunfo da Vontade (1935)

          Já no pós-guerra a realizadora afirmou que O Triunfo da Vontade“não contém uma única cena reconstruída. Tudo nele é verdade. É história. Puramente um filme histórico”. Numa entrevista concedida aos Cahiers du Cinéma, Leni defendeu a pureza do seu trabalho e o seu carácter totalmente independente da propaganda. “Nenhuma cena foi encenada” - disse com veemência - “tudo é genuíno. E não existem comentários tendenciosos pela simples razão que não existem quaisquer comentários”. 
            Não podemos negar que as inovações introduzidas por Riefenstahl nos filmes de Nuremberga demonstram o seu génio artístico, que era, de facto, invulgar: as filmagens aéreas, as filmagens efectuadas sobre carris e em plataformas elevatórias, ou a utilização de patins nos operadores de câmara para filmagens em movimento, são disso prova inequívoca. Mas o registo puramente documental defendido por Leni é completamente desmontado pelos relatos de Speer, que assegura que algumas cenas foram ensaiadas mais de 50 vezes e refeitas até à perfeição. Os remorsos do arquitecto podem-no ter levado a exagerar, talvez tenham sido “só” 20 vezes, ou talvez 10; de qualquer forma, não foi certamente um documentário “BBC Vida Selvagem” que ali foi filmado. Tudo naquela convenção aconteceu para usufruto das câmaras. Nas palavras de Sontag, “as imagens não são simplesmente a gravação da realidade; a “realidade” foi construída para servir a imagem”.  



  
O elevador instalado num dos gigantescos mastros permitiu uma filmagem aérea sobre as massas presentes no 6º congresso do NSDAP. Nada faltou a Leni na produção d´O Triunfo da Vontade

           Apesar de ter perdido vários “julgamentos” da opinião pública (também ganhou alguns, note-se), a realizadora nunca foi condenada nos julgamentos reais a que foi sujeita. Prevaleceu a ideia da naïveté política e de uma vida dedicada à sétima arte, sem percepção do contributo prestado à glorificação de um regime monstruoso. Ao contrário do que seria de esperar, a proximidade temporal dos factos não a prejudicou aos olhos dos juízes. Na verdade, muitos artistas do passado dedicaram algumas das suas obras à propaganda e trabalharam para patronos com segundas intenções, sem que isso tenha retirado grandeza a essas obras e sem que os respectivos artistas tenham ficado com o seu nome misturado com as segundas intenções dos patrocinadores. Com o passar dos anos diminuem as hipóteses de se detectarem os conteúdos propagandísticos dos trabalhos, ficando apenas à vista a sua vertente estética, por vezes sublime. Leni não contou com esta “ajuda” e mesmo assim safou-se. Outros realizadores ligados ao nazismo não tiveram a mesma sorte e acabaram condenados como criminosos de guerra.



A crítica reconhece O Triunfo da Vontade.
Os prémios que recebeu foram usados por Leni Riefenstahl na defesa da sua imagem como uma simples artista 

        Sendo sem dúvida a mais famosa, Leni Riefenstahl não foi a única cineasta do regime. A percepção da importância do cinema pelos ideólogos do nacional-socialismo era demasiado grande para que estes se contentassem com uma única figura. Conheciam bem a história desta arte e sabiam que ela tinha sido usada como “catalisador de vontades” desde o seu aparecimento (a título de exemplo, o primeiro filme a ser produzido na Rússia, em 1896, retratava a coroação do Czar Nicolau II; Trotsky, uns anos mais tarde, chegou a afirmar que o cinema substituiria a religião e a vodka nos hábitos do povo). 
         Na década de 30, Fritz Hippler, colaborador da Secção do Filme no Ministério da Propaganda (e mais tarde responsável pela fita O Eterno Judeu, um dos mais notórios filmes anti-semitas realizados na Alemanha), publica um ensaio intitulado O filme como uma arma. Aí defende que de todos os meios de propaganda disponíveis, o filme era sem dúvida o mais poderoso e o que provocava um efeito mais intenso no povo, pois enquanto a palavra transmitida oralmente ou por escrito estava dependente do contexto e da qualidade do orador, o filme conjugava a imagem e o som obtendo uma persuasão máxima. Hippler recorre ao texto de 1916 da autoria do pioneiro do cinema alemão Metzter (The Film as a Means of Political Advertising), para mostrar que este já defendia que os responsáveis alemães deveriam começar a “atingir as massas” usando a imagem. Na opinião de Metzter, os inimigos da Alemanha na I Guerra Mundial já dispunham da “arma cinematográfica”, enquanto os alemães ainda não usavam devidamente as suas potencialidades propagandísticas.
         O ensaio de Hippler é bastante claro relativamente ao investimento do III Reich no cinema. Pelas contas apresentadas pelo próprio, em 1934, 413 em cada 1000 ingleses iam ao cinema todas as semanas enquanto na Alemanha esse número se situava nos 86 por cada 1000. No entanto, em 1937 a Alemanha ultrapassava a Inglaterra como o país europeu com mais salas de cinema e neutralizava a diferença no número de espectadores. A frase final do texto resume o pensamento do Ministério da Propaganda: “aumentar o número de espectadores de cinema está entre as tarefas mais importantes da política de cinema alemã, e dessa forma será aumentada a eficácia do filme na propaganda e na iluminação popular”. Como “recompensa” pelos seus serviços “em prol da arte”, os Aliados ofereceram a Fritz Hippler, em 1948, uma estadia de dois anos na prisão por crimes de guerra. Em regime TI, esperamos nós.
        Além do aumento exponencial das salas de cinema propriamente ditas, a nazificação pelo cinema foi feita recorrendo a outros métodos: cerca de 2/3 das 60.000 escolas alemãs contavam com salas de projecção, além das muitas sessões realizadas em ginásios, centros comunitários, fábricas e instalações militares.
       O investimento gigantesco do III Reich no cinema ainda consegue surpreender os investigadores contemporâneos. Já em 2010, Philippe Mora, um realizador australiano, encontrou em Berlim filmes rodados antes da II Guerra Mundial em formato 3D. Os filmes, de conteúdo propagandístico, com imagens do quotidiano alemão, são datados de 1936 e foram encontrados em ficheiros federais alemães. É de realçar que o formato 3D só se tornou conhecido nos EUA em 1952, ou seja, 16 anos depois! "Os filmes, com a duração de 30 minutos, foram rodados em 35 milímetros, aparentemente com um prisma colocado à frente das lentes", disse Mora à revista Variety, acrescentando que “a qualidade dos filmes é fantástica". No seu julgamento em Nuremberga, Albert Speer salientou: "A ditadura de Hitler foi a primeira ditadura de um Estado industrial, uma ditadura que, para dominar o seu próprio povo, se serviu perfeitamente de todos os meios técnicos”. 
       A propaganda através do cinema tinha prioridade máxima na Alemanha. Mesmo nos anos finais da II Guerra Mundial, enquanto escolas e fábricas encerravam, os cinemas continuavam em funcionamento, e em Berlim, as unidades anti-aéreas foram colocadas especificamente a proteger as salas. A sua utilização pelos nazis não se resumia à propaganda directa mas destinava-se igualmente ao entretenimento das massas e como um instrumento de fuga da realidade. Goebbels afirmava que uma das causas da derrota alemã na I Guerra Mundial tinha sido o falhanço do regime em sustentar e manter em níveis elevados a moral dos cidadãos, e durante a II Guerra Mundial apostou fortemente na distribuição de musicais ligeiros e comédias. Alejandro Pizarroso Quintero, um académico madrileno que se dedicou à investigação destes fenómenos, considera que “esta função de escape é também um instrumento de propaganda, sobretudo como inibidora de qualquer propaganda contrária”. 
        O Ministério da Propaganda exigia controlar todos os guiões previamente, impondo imediatamente as mudanças consideradas necessárias; naturalmente, a nacionalização de quase toda a indústria foi apenas uma questão de tempo, e no início da guerra já as grandes empresas do sector - Ufa, Tobis e Bavaria - estavam nas mãos do Estado. Até esse passo ser dado eram concedidos subsídios mediante uma classificação dos filmes, sendo o grau mais elevado atribuído aos filmes que exaltassem os valores raciais e transmitissem os princípios morais e políticos do Reich. Na década de 40 só três companhias de cinema mantinham algum grau de autonomia, uma das quais a de Leni Riefenstahl. E a generosidade de Hitler levou-o a presentear igualmente outros povos com as maravilhas da 7ª arte. Entre outras ruindades, após as invasões fizeram questão de exibir aos noruegueses as filmagens do blitzkrieg sobre os polacos. 
        As teorias raciais do nacional-socialismo não foram esquecidas pela sétima arte. Algumas das mais famosas películas alemãs desta época estão directamente relacionadas com a propaganda anti-semita. Para além do já referido Fritz Hippler e respectivo Eterno Judeu, salienta-se igualmente o realizador Veit Harlan e o seu Judeu Süss. Os argumentos eram simples: a decadência moral dos judeus e a imutabilidade das suas (horríveis) características. 



O Eterno Judeu (1940) de Fritz Hippler. A figura representada no cartaz é todo um programa 

          A obra de Harlan foi vista por vinte milhões de alemães (numa população total de setenta milhões!) e segundo alguns relatos, depois de assistirem ao filme, alguns espectadores em estado de excitação iam pelas ruas em perseguição de judeus. A eficácia propagandística era tal que o chefe das SS, Heinrich Himmler, obrigava os seus membros a verem o filme.
         Riefenstahl também foi acusada de contribuir para as teorias raciais do regime através da apologia da perfeição física presente no filme Olympia(1938), embora tenha beneficiado do facto de não ter ocultado nas suas filmagens as vitórias de Jesse Owens, o famoso atleta americano negro. Existem várias histórias sobre supostas discussões entre Leni e Goebbels, com a realizadora a resistir às pressões para eliminar Owens da edição final do filme, mas há quem defenda que este conflito nunca aconteceu, realçando que os objectivos que os nazis pretendiam alcançar com Olympiaeram claros: construir uma imagem da Alemanha como um “país hospitaleiro, moderno, eficiente, uma nação pacífica de desporto e benigna”. 



Jesse Owens pela lente de Riefenstahl. Esta fotografia foi vendida em 2011 pela leiloeira Christies por 6000 dólares   

         Na realidade, é bastante fácil defender a realizadora no caso concreto do trabalho que fez sobre os Jogos Olímpicos de Berlim em 1936. O filme é avançadíssimo para a época, são usadas técnicas absolutamente inovadoras e ainda hoje a televisão apresenta visualmente o desporto através de alguns ensinamentos de Olympia. A própria revista Time, 60 anos depois da icónica capa sobre o fim da guerra na Europa (um Hitler riscado com um grande X vermelho), não teve qualquer problema em incluí-lo na lista dos 100 melhores filmes de todos os tempos.



Olympia (1938): demasiado belo para ser boicotado 

      Como observou Ian Kershaw, “com o fim de Hitler, os sinais exteriores do nacional-socialismo também desapareceram da face da terra, aparentemente da noite para o dia”. A “relação hipnótica, quase sensual” que Hitler criou (palavras de Kissinger), passou a justificar muitas das cumplicidades com a utopia revolucionária nacionalista do führer. Uma utopia que era fundamentalmente emocional e apoiada em variados “antis”: anti-racional, antiparlamentar, antiliberal, anti-individualista, antidemocrática, anti-intelectual. Os crimes eram assim “vendidos” como meros actos necessários para alcançar o bem comum e universal e seria a propaganda a tratar da “produção de consentimento” de que nos fala Chomsky.
         Os Aliados conheciam o poder propagandístico do cinema e não parece provável que este facto lhes tenha passado despercebido. Existe aliás um episódio do pós-guerra em que, de uma forma deliciosamente irónica, o feitiço se vira contra o feiticeiro: quando os soldados americanos entram no recinto de Nuremberga destinado aos comícios nazis registados pela lente de Riefenstahl, não resistem a gravar em filme o momento em que dinamitam a grande suástica que se erguia por cima do palanque do orador. Essa pequena película (que pode ser hoje vista no YouTube) constituiu uma peça de propaganda dos Aliados e foi usada maciçamente para divulgar a vitória militar obtida. 




https://youtu.be/MJzdgZ1lOTA


Para sorte de Leni Riefenstahl, os seus indesmentíveis dotes artísticos, associados ao “culto da beleza”, permitiram-lhe uma desnazificação sem danos de maior. Viu o “sol aos quadradinhos” até ao final dos julgamentos, mas livrou-se da dura realidade que a esperava caso lhe tivesse sido atribuída a prática de crimes de guerra. Ainda conseguiu lançar um filme – Tiefland (1954) – que tinha gravado, com recurso a prisioneiros de campos de concentração, durante a guerra; um documentário (dos “verdadeiros”, se é que existe essa categoria) sobre a vida subaquática; várias reportagens fotográficas (sobre os Jogos Olímpicos de 1972; sobre tribos africanas do Sudão; sobre recifes de corais); e um livro de memórias. Praticou mergulho desde os 70 até aos 94 anos de idade (falsificou a data de nascimento em documentos para conseguir ter acesso a licenças especiais que lhe permitissem mergulhar a grandes profundidades), sobreviveu a uma queda de helicóptero com 97, e morreu, no meio de projectos para regressar a um território sudanês mergulhado na guerra civil, com a bonita idade de 101. Que o meu fascínio fóbico pelas cobras em geral e por Leni Riefenstahl em particular dure assim tanto tempo, é o que peço ao Pai Natal nas festividades que se aproximam.




in  http://malomil.blogspot.pt/2016/12/a-cobra.html

Como o sistema financeiro captura a Humanidade através da dívida


A dívida, ao tornar-se perpétua constitui uma renda que alimenta o parasitismo capitalista. Quer seja aquela que subscrevemos, quer seja aquela que a classe política nos endossa com o rótulo de dívida pública, por encomenda do sistema financeiro.

Sumário
1 - Da moeda até à dívida e o papel do Estado
2 - Como se constrói a dívida e a sua mansa aceitação
3 - O capitalismo existe, convém não esquecer
4 – O papel dos Estados na engorda do sistema financeiro



1 - Da moeda até à dívida e o papel do Estado

Houve uma longa época em que as dívidas faziam parte das naturais trocas entre gente que procurava satisfazer as suas necessidades, numa base de interações entre membros de uma mesma comunidade e em que a usura não fazia parte das mentalidades. As dívidas faziam parte dos desequilíbrios naturais dentro das comunidades e não como elementos de diferenciação e autónomos, de domínio de credores sobre devedores; créditos como ativos e débitos, como passivos.

O surgimento do dinheiro, materializado em sal ou conchas, focou-se depois nos metais preciosos – ouro, sobretudo – que, dada a sua inalterabilidade, correspondia à procura de bens estáveis e aceites, de fácil transporte para troca com outros bens. A própria materialidade do dinheiro impedia a sua movimentação num comércio mais alargado e a segurança dos seus detentores face a roubos; era vulgar os reis nas suas deslocações guerreiras transportarem arcas com o tesouro real e, em caso de dificuldades financeiras procederem à desvalorização da moeda substituindo parte do ouro por prata ou cobre. 

Na China, antes do século X e, no século XIII, na Itália, onde a densidade das relações comerciais longínquas era grande, generalizou-se a utilização de documentos que certificavam o depósito num banco de certa quantidade de ouro e que garantia o levantamento noutro banco por parte do portador, sendo portanto títulos transmissíveis. Passado o período de abundância de ouro, trazido do golfo da Guiné pelos portugueses e saqueado pelos espanhóis no México e com o enorme desenvolvimento do comércio longínquo inerente à expansão colonial europeia, chegou-se à conclusão que não haveria ouro armazenado nos bancos que correspondesse ao valor das mercadorias transacionadas o que fragilizava a confiança nos bancos por parte dos depositantes.

Os Estados, no século XIX, para dotar os sistemas monetários da confiança generalizada por parte das populações e dos negócios, impuseram o monopólio da emissão de moeda-papel - as notas que se usam hoje - em bancos emissores, sem contudo poderem assegurar a convertibilidade dessas notas em ouro. Isto é, ao emitirem notas sem outra contrapartida que não a confiança por parte da população, os bancos emissores e os Estados assumiam potencialmente uma dívida que jamais poderiam pagar; e para que ninguém pudesse colocar em causa a confiança no banco emissor/Estado, exigindo a conversão de notas em ouro, os Estados vieram a decretar a inconvertibilidade dessas notas em ouro, a assunção de devedores sem capacidade de pagar as suas dívidas, seja em ouro, seja no que fosse.

A Inglaterra cancelou a convertibilidade da libra em ouro em 1931 pois o ouro estava em emigração acelerada para os EUA, onde em 1934, todos os bancos foram obrigados a depositar o seu ouro no Tesouro em troca de certificados. Em 1944, em Bretton Woods, todas as moedas se referenciaram ao dólar, a única convertível em ouro, ao preço de $ 35/onça (31,104 grs) referência que foi alterada por Nixon em 1968 para $42,22/onça, como resposta aos deficits externos corrosivos dos EUA, à guerra do Vietnam e à compra francesa de ouro contra a entrega de dólares. Finalmente, em 1971, foi cancelada a convertibilidade do dólar em ouro, ficando todas as moedas mundiais sem qualquer referência real que não a confiança das populações na aceitação generalizada de notas como instrumentos de transação, poupança e especulação. Até mesmo a ficção de uma relação entre o ouro e o dólar acabou por desaparecer em 1976, deixando à Reserva Federal a total liberdade de imprimir notas de banco, sem qualquer valor que não a aceitação generalizada do seu poder aquisitivo. Isto quer dizer que um banco central ao emitir moeda, emite um título de dívida que cede ao sistema bancário, para colocação na sociedade, no âmbito deste mecanismo;

a) o banco central cria um valor a partir do nada, tendo em conta que se for excessivo no contexto da moeda em circulação, esse valor conduz a inflação e que se for insuficiente promoverá subida das taxas de juro, dificultando negócios. Há que ter em conta o valor da riqueza em circulação, a conjuntura e o ritmo das transações numa sociedade;

b) o banco central cede esse valor a um banco comum que entrega um documento de assunção de dívida, perante o banco central, cedente;

c) o banco comercial vai ceder o valor equivalente a vários clientes no âmbito do que se chama multiplicador do crédito, como adiante se explicará.

Gera-se assim uma cascata de créditos e de dívidas, sem qualquer ancoragem em poupança e totalmente dependente da confiança existente nessa emissão monetária originária. Nessa cascata têm um papel essencial os destinatários finais, particulares e empresas, que transformam os seus débitos em bens e que de facto, alicerçam toda a cadeia; na base, está portanto o trabalho, como único e real criador de valor. 

É esse mecanismo artificial e artificioso que está presente no quantitative easing utilizado por Draghi no BCE; uma emissão monetária que irá triplicar o balanço do banco central da Zona Euro, de um (em 2014) para três biliões de euros em 2016, com a particularidade de que os bancos comerciais para deterem meios financeiros para os seus negócios entregam, frequentemente como garantia, títulos de dívida pública, financiando assim indiretamente, os estados emissores daqueles títulos, mormente os da periferia sul da UE. 

Esta política do BCE corresponde a uma bomba de relógio. Primeiro porque não está a gerar uma inflação desvalorizadora de dívidas, mormente públicas; depois porque a emissão monetária agrava as dívidas públicas, já por natureza, financeiramente impagáveis e insustentáveis do ponto de vista social, em países como Grécia ou Portugal; e, finalmente, porque essa massa monetária vai inchando a bolha especulativa dos chamados mercados financeiros, com rebentamento inevitável faltando saber apenas o momento.

Passemos ao sumário relato de uma curiosidade portuguesa no século XIX.

Em 27/11/1880 a revista inglesa The Economist referia a instabilidade dos mercados: "Os mercados monetários da Europa estão a ficar cansados, e não sem razão, da constante solicitação por Portugal de novos empréstimos" e cinco anos depois, apontava: "No próprio interesse de Portugal era preferível que as suas facilidades de endividamento fossem, agora, restringidas". A Comissão Europeia e o Eurogrupo são os membros mais recentes da mesma linhagem financeira.

Em 1890 sucedeu a falência do Baring Brothers (118 anos depois aconteceu o mesmo em outro negócio de família, o dos manos Lehman), o principal parceiro do governo português na City e que para fazer face à situação transferiu £ 1 milhão em ouro do Banco de Portugal para Londres, reduzindo substancialmente as reservas portuguesas. A crise financeira subsequente junta-se ao Ultimato inglês ambos a demonstrar o que tem valido a soberania portuguesa, cantada por nacionalistas e patriotas; a revolta republicana de 31 de janeiro de 1891 foi um aproveitamento oportuno da situação.

Em plena crise, a The Economist utilizou uma terminologia muito actual na sua edição de 6/2/1892. "Tem sido evidente de há bastante tempo que o país (Portugal) estava a viver acima dos seus meios… "É inevitável uma redução significativa do encargo com a dívida…”. “Os detentores da dívida portuguesa têm de consentir num abatimento dos seus direitos, por força das circunstâncias".

Como é fácil de ver, a imperial Inglaterra tratava a sua semicolónia portuguesa com a dignidade adequada; tal como hoje acontece com a oligarquia bruxelense. Passados tantos anos, as desigualdades entre as várias áreas na Europa mantêm-se; mas, a admissão de uma anulação de parte substancial da dívida não está presente nos meios políticos porque acarretaria um encolhimento da dimensão do sistema financeiro e de alterações profundas no seu funcionamento. Embora essa anulação seja inevitável e justa, mesmo que silenciada – eppur si muove.

2 - Como se constrói a dívida e a sua mansa aceitação

Na política portuguesa (e não só) prepondera um marcado conservadorismo (também) no capítulo da dívida em geral e da pública em particular; e essa atitude, de mentira, mansidão ou ignorância, configura uma cortina que oculta o profundo significado da dívida e que se consubstancia sob três formas; 

a) a não consideração da dívida – pública ou privada – como um instrumento de captura de povos e de vidas construído pelo capitalismo; isso, nem sequer roça as meninges dos membros da classe política, mormente do segmento que se arroga da defesa do povo trabalhador.

b) são pouco visíveis as opiniões que colocam em causa a ilegitimidade da dívida uma vez que prepondera o orgulho de “não ser caloteiro”, um orgulho em total desarmonia com as práticas de corrupção, vigentes no país europeu ocidental medalhado com o bronze nesse campeonato.

ca dívida é observada com conformismo, de modo economicista[1], dividindo-se as opiniões na classe política entre um “pagamos obedientemente” e um “pagamos obedientemente mas, agradecemos uma atençãozinha”.

3 - O capitalismo existe, convém não esquecer

Para superar as suas dificuldades de acumulação, o capitalismo altamente globalizado, alicerçado numa competição acerba entre as multinacionais, provoca uma encarniçada luta pelos recursos do planeta que transforma enormes áreas em cenários de guerra e devastação ambiental. 

A sua existência tem-se baseado na pressão sobre os custos de trabalho e na necessidade de investimento para a produção de bens e serviços, para vencer a concorrência; como elementos para incrementar a acumulação de capital. Como se verá adiante, a financiarização vem prosseguindo essa acumulação, com a criação de capital-dinheiro de forma totalmente desregulada, como na fábula do golem[2], enquanto monstro criado para produzir segurança e que, posto à solta por descuido, ameaça toda a estrutura social do planeta. 

Para essa competição na venda de bens e serviços são essenciais políticas de rebaixamento dos custos do trabalho, em termos de salário efetivo, como ainda um prolongamento das jornadas de trabalho, em contradição total com a produtividade que o desenvolvimento tecnológico tem permitido. Além disso, a produção global dominada pelas multinacionais encontra-se segmentada, entre outras razões, para o aproveitamento das chamadas vantagens competitivas, onde se incluem os baixos preços do trabalho, as indignas condições e os parcos direitos impostos a quem trabalha. Em suma, cada grau de competências laborais constitui um mercado próprio, no contexto de um globalizado “mercado de trabalho”. No gráfico seguinte, a estagnação dos salários na indústria nos EUA mostra essa tendência.




O mesmo pode ser observado em Portugal, onde nos últimos 25 anos se verifica uma lenta e progressiva perda de importância relativa das remunerações do trabalho face a outros rendimentos e reveladora da incapacidade reivindicativa dos trabalhadores, manietados por burocracias sindicais partidarizadas.





Criam-se assim bolsas enormes de desempregados e subempregados, trabalhadores sem-papéis, pobres ou precários, para além de reformados pressionados pelo assalto que se vem efetuando aos valores acumulados de descontos para os sistemas de segurança social. Constituem-se ainda enormes segmentos de trabalhadores em funções burocráticas estupidificantes e mal pagas, como é norma geral na burocracia. Aqueles, preenchem aparelhos militares e policiais sem funções que não a prevenção de ameaças ao poder do capital; sistemas judiciários e fiscais atolados em casos de crime, conflitualidade comum, cobranças, coimas e multas; gigantescos aparelhos administrativos, publicitários ou de vendas das multinacionais, replicados por pequenas e médias empresas; funções de vigilância em edifícios e locais públicos; de tratamento de dados, etc. Para o capitalismo de hoje, existem claramente, demasiados seres humanos no planeta

Deste contexto de pressão sobre os rendimentos do trabalho, para garantia de baixos custos de produção de bens ou serviços, não resulta suficiência para a satisfação das necessidades de reprodução do capital investido, necessário para acompanhar a concorrência, daí surgindo a conhecida tendência para a baixa das taxas de lucro; nem tão pouco se cria uma procura adequada à compra daqueles bens ou serviços, ainda que incitados por uma publicidade invasiva. 

    Para além dos elementos que se prendem com salários e outros aspetos relacionados com o trabalho, há outro elemento essencial que bloqueia o capitalismo - a ausência de investimento. Por um lado, a pressão sobre os preços do trabalho favorece a geração de lucros mas, a concorrência e a evolução tecnológica exigem aumentos de produtividade, exigem investimentos, fusões e aquisições entre empresas o que, contudo, não evita a tendência para a baixa das taxas de lucro, mesmo que eliminando operadores. Na realidade, na grande maioria dos setores de atividade observa-se o domínio de poucas empresas com a presença de outras, mais pequenas, onde os salários e os lucros são menores, tal como as capacidades de investimento; são muito poucos os casos de livre concorrência entre pequenas empresas, como considerado por Adam Smith.


Antes do recente domínio do neoliberalismo falava-se dos modelos alemão e japonês (a que se poderia juntar o capitalismo de estado, soviético), de integração entre a grande indústria e o capital bancário nacional, com a criação do capital financeiro, uma designação criada por Hilferding em 1910[3] e adoptada posteriormente por Lenin. Essa formulação era colocada em contraponto com o modelo de gestão anglo-saxónico[4], de separação entre aqueles sectores, para que o capital bancário e as instituições financeiras em geral se libertassem das amarras do financiamento de sectores industriais e da sua gestão, para uma dedicação muito flexível como detentores de títulos, intervindo nas empresas nomeadamente em operações de aquisição e fusão, a que se seguem actos de “downsizing”, de redefinição e redimensionamento que, em regra, incorporam despedimentos. Como é evidente, é esta versão de origem anglo-saxónica que vem sendo predominante como constituinte do neoliberalismo.

Como é natural no capitalismo, os capitais tendem a dirigir-se para os negócios onde a sua rendabilidade possa ser maximizada na comparação com outras atividades. Em termos de rendabilidade, sobressai o sistema financeiro, através da especulação financeira, imobiliária ou sobre mercadorias (as “commodities”), da indústria de armamento ou dos tráficos diversos, de emigrantes, de drogas, de órgãos, de armas… desenvolvendo-se para o efeito fórmulas de benevolência fiscal, os conhecidos endereços offshore, no seio da mais sagrada das liberdades nos tempos que correm – a da movimentação de capitais. 

Sendo mais rentável o “investimento” financeiro do que o investimento na produção de bens e serviços, a maioria dos capitalistas prefere colocar os seus pecúlios nos ditos mercados financeiros, com aplicação mais flexível, com contabilização de lucros mais rápida, instantânea até, do que adquirir equipamentos modernos, tentar vencer a concorrência, arriscar com o surgimento de mudanças tecnológicas, de hábitos, modas, etc., antes da amortização técnica ou financeira do equipamento, sabendo-se que o comprometimento com esse equipamento não pode facilmente ser reconduzido à condição de capital-dinheiro. Isso, ao contrário das reconversões dos capitais aplicados em títulos na roleta financeira, que são fáceis, de realização instantânea, decidida por algoritmos informáticos. 

No entrecruzar caótico de várias linhas de atuação, a satisfação ou não das naturais necessidades humanas é uma variável aleatória que entretém os institutos de previsão[5], armados com poderosos computadores, dúzias de prémios nobel, coortes de professores universitários e sobre cujos resultados já demos alguns exemplos. Gente, só interessa se tiver empregabilidade, como se diz na novilíngua neoliberal.

   Sendo escasso o rendimento corrente das populações para a satisfação das suas necessidades, mormente daqueles que vivem do trabalho, mais insuficiente ele se mostra se for preciso encontrar no “mercado” a satisfação de direitos elementares como o da habitação; e ainda para corresponder aos apelativos consumos propagados pelos media – nomeadamente automóveis, viagens, equipamentos domésticos de moda. Em consequência, o sistema financeiro facilita, em regra, o crédito e a sua expressão duradoura, a dívida, como mecanismo de captação de rendimentos futuros, eventualmente por toda a vida; como no capitalismo as próprias pessoas são tomadas como mercadorias, o mecanismo da dívida torna a própria vida de cada um como propriedade capitalista. 

Nessa endogeneização da divida como uma necessidade trivial inserem-se vários elementos. Um, são as dívidas para a compra de habitação, uma vez que os estados neoliberais entregaram a satisfação dessa necessidade elementar ao ditoso mercado, para alegria dos bancos e da corrupção política envolvida no processo; e para suprema desdita de quantos, caídos no desemprego, ficaram sem as casas mas com parte da dívida.

O outro elemento é constituído pelas dívidas para a satisfação de consumos com taxas de juro elevadíssimas, as dívidas de curto prazo no seio da utilização de cartões de crédito, para além de comissões e ainda taxas várias que são permitidas aos bancos, mesmo que a detenção de uma conta bancária com cartões associados, seja, de facto, uma imposição estatal. A aceitação da divida como normalidade é uma forma de captura ideológica por parte do capital.

Como a dívida privada fica restrita a um indivíduo, uma família, uma empresa, mesmo com garantias, o risco é relativamente elevado, porque de pouco serve ao sistema financeiro apoderar-se, em caso de incumprimento, de casas e empresas, uma vez que não é do seu interesse a gestão de imobiliário desvalorizado, nem a recuperação de empresas mais ou menos falidas. Essas garantias constituem, principalmente, um garrote para o devedor pois, em caso de incumprimento, promovem a sua ruina. 

Em Portugal, nos anos 90, os bancos detinham direitos creditícios sobre muitos terrenos e fábricas de empresas falidas e, encaminharam-nos para projetos imobiliários transformando algumas perdas em novos créditos, com altas taxas de lucro; e jamais para a sua recuperação como empresas industriais. Simultaneamente, estimularam o boom da habitação que o Estado e a classe política nunca cuidaram, bem como a deriva do investimento público e público-privado, em autoestradas e eventos faraónicos, como a Expo-98 e os estádios de futebol.

4 – Os Estados engordam o sistema financeiro

Durante os anos 80, o sistema financeiro global, com o FMI/Banco Mundial à cabeça, forçou os países do chamado Terceiro Mundo a endividarem-se, como processo de rapina, de privatizações, de integração desses países no mercado global, em detrimento de qualquer lógica de bem-estar dos povos e aliciando as classes políticas locais para o efeito, com o recurso a brutais ditaduras, se necessário (Chile, Brasil, Argentina…). Como em muitos desses países a grande pobreza era a regra e as classes médias pouco numerosas (ou em processo acelerado de perda de poder de compra), não era viável um endividamento significativo das famílias; e as grandes empresas, no padrão terceiro-mundista, eram públicas ou de capital estrangeiro. 

Resulta daqui a importância da captura dos povos através do Estado e das suas oligarquias, civis ou militares, com a constituição de enormes dívidas públicas. Neste contexto, o Estado, através da punção fiscal transfere rendimento dos pobres – sem qualquer capacidade de acesso a crédito bancário – para o sistema financeiro… através da dívida pública. Nas sociedades europeias, envelhecidas, os reformados, por exemplo, não são um segmento de população com capacidade para um (maior) endividamento mas, todos através da carga fiscal veem uma parte dos seus rendimentos capturados como contributo para pagamento de encargos com a dívida pública.

Contrariamente ao que se diz, os estados-nação não vão à falência, pois têm sempre uma população compelida a financiar a armadilha da dívida, porque não pode fugir em massa e porque há um aparelho de repressão fiscal e judicial para obrigar ao pagamento; em casos extremos, os credores aceitam perdas, como no caso da Grécia em 2012 ou reescalonam as dívidas, aliviando as prestações próximas e onerando-as a médio prazo. Assim, é muito mais aliciante para o sistema financeiro aceitar títulos de dívida pública, sem se envolver diretamente no endividamento ou na cobrança de populações em dificuldades, utilizando portanto, os Estados e as classes políticos nessa intermediação. Dito de outro modo, o sistema financeiro desenvolve mecanismos de criação de rendas, perpétuas, a seu favor através da geração de dívida pública e cada classe política cumpre o seu papel de distribuição pela população, a tarefa de mutualizar a dívida internamente e de modo desigual, claro está.

Na Europa, em caso de desmantelamento da UE ou da Zona Euro, bem como de saídas solitárias daquelas instituições, o isolacionismo identitário facilitaria o desiderato do sistema financeiro de criação de rendas perpétuas sob a forma de dívida. Se não tem sido possível até agora constituir plataformas para a construção de uma união solidária dos povos europeus, cada estado nação barricado nas suas fronteiras, com a sua bandeira na torre de menagem e moeda própria a circular, tornar-se-ia uma mais fácil presa do capital financeiro globalizado, dos seus boicotes e das suas chantagens. 

Conscientemente ou não, as derivas patrioteiras, defendidas por LePen e suas metástases espalhadas pela Europa, se vingarem, promoverão largos sorrisos no capital financeiro global e os seus protagonistas aceitarão o papel de carrascos dos povos, com uma ferocidade que os gangs inscritos no PPE ou S&D até agora não têm utilizado. Convém recordar que a República de Weimar mesmo tendo assassinado Rosa Luxemburgo e Karl Liebknecht se situou muito aquém da barbaridade assassina do III Reich.

4.1 – Bill Clinton colocou o monstro à solta

A deriva do sistema financeiro para a autonomia face à atividade produtiva beneficiou enormemente com a revogação, por Bill Clinton em 1999, da Lei Glass-Stegall promulgada por Roosevelt em 1933 para garantir uma ligação estável entre poupança e investimento e evitar o contágio sistémico da atividade especulativa. Não havendo separação entre bancos comerciais e de investimento (leia-se especulativos), o dinheiro poderia crescer de forma inaudita, sem limites, com os bancos comerciais a poderem também entrar na especulação, comprometendo não só o seu papel no financiamento das empresas mas, também os depósitos dos particulares e, portanto toda a atividade económica no planeta, uma vez que deixou de haver verdadeiros sistemas nacionais[6]. Por exemplo, em 2013, as responsabilidades face a derivados do Deutsche Bank, correspondiam a 16 vezes o PIB alemão tornando este banco too big to fail e sob a carinhosa proteção de Merkel e Schauble. A dívida global, pública ou privada, era calculada pelo FMI em $ 152 biliões - dos quais $ 50 biliões são da responsabilidade dos estados - correspondentes a 225% do PIB mundial (comparar com nota 5). Assim, o total das dívidas públicas correspondia a 75% do PIB global mas, correspondendo a 133.7% no caso português. 

Por outro lado, empresas e particulares encontraram também, na volúpia especulativa, formas de aumentarem os seus capitais e poupanças, beneficiando das maiores taxas de lucro disponíveis na área financeira e ainda da facilidade da mutação dos seus títulos em dinheiro e vice-versa. Assim, a economia “normal”, produtora de bens e serviços, inseriu-se na lógica dos capitais financeiros, procurando apresentar lucros avultados para obter crédito com taxas de juro interessantes, para manter em constante valorização os seus títulos cotados na bolsa, pagando principescamente aos seus gestores com “stock options”, para que aqueles se mostrem empenhados na valorização dos títulos.

Suponhamos que um banco acolhe um depósito a prazo no valor de 1000, sabendo-se que, durante esse período poderá utilizar esse dinheiro excepto uma parte, digamos de 10%, por exigência do banco central. Assim, o banco poderá emprestar 900 a um cliente, o qual irá utilizar, por hipótese, o dinheiro numa compra pagando através do multibanco e recaindo esse valor na conta do vendedor. Os 1000 iniciais resultaram em depósitos totais de 1900 e um crédito concedido de 900 sucedendo-se o exercício tantas vezes quantas as necessárias, podendo o segundo depósito alicerçar um empréstimo de 810, etc. Daqui o interesse dos bancos em se situarem em todas as transações de pessoas e empresas, para captar um volume maximizado de depósitos a multiplicar como créditos, sabendo que só uma parte marginal do volume global dos depósitos volta diariamente aos bolsos dos particulares. Este mecanismo é designado por multiplicador do crédito e constitui um privilégio dos bancos, não podendo um indivíduo proceder de igual modo.

O esquema funciona sempre que os depositantes acreditarem no banco ou no conjunto deles, como guardiães do seu dinheiro pois quando isso deixa de acontecer pode haver uma corrida aos depósitos, com os bancos insolventes de portas fechadas guardados pela polícia (Argentina) ou essa corrida originar uma limitação aos levantamentos de dinheiro como aconteceu na Grécia, em 2015, sucedendo ali algo de invulgar que é haver mais dinheiro nas mãos do público do que nas contas dos bancos. O receio de inesperadas crises financeiras faz os Estados, em conluio com o sistema financeiro, procurar reduzir ao máximo a posse de dinheiro físico junto das pessoas, pensando-se mesmo em tornar todo o dinheiro virtual.

Posteriormente a operações de concessão de crédito como as atrás exemplificadas, um banco pode tomar um conjunto desses créditos repartindo o valor da sua soma, em vários títulos que são colocados à disposição do mercado, sendo adquiridos por elementos do próprio sistema financeiro – é a titularização. O credor original prescinde de uma parte dos juros que cobra aos devedores efetivos para recuperar grande parte do capital emprestado e poder utilizá-lo de novo, iniciando assim uma nova cadeia de créditos. Por sua vez, os compradores desses títulos, irão utilizar esses e outros com distintas proveniências e proceder a outras titularizações; essa multiplicação enforma as pirâmides de Ponzi, do nome de um burlão que, nos anos oitenta do século passado teve uma réplica em Portugal, a D. Branca. Como se compreende, esta fórmula incrementa de modo inaudito o volume de obrigações, gera um emaranhado de dívidas articuladas como um castelo de cartas que, quando desaba, atinge os povos, através da perda de poupanças, de empregos e de planos de austeridade impostos pelas classes políticas como procuradores do sistema financeiro, dispostos a usar fundos públicos para minorar as perdas daquele. Nesse caso a salvação dos bancos passa pelos bail-ins ou pelosbail-outs, cujas designações representam, respetivamente, o sacrifício dos acionistas ou da população em geral, obrigada a participar na recapitalização, pelo Estado, pelo vetor de serviço da classe política que, naturalmente, não pergunta à população se pretende ajudar um banco em dificuldades.

Depreende-se também que a partir dos primeiros elos da cadeia de títulos emitidos em operações de titularização, cada tomador sabe a quem os comprou mas nada sabe das operações incluídas nas fases anteriores; e, menos ainda sobre a identidade ou a solvabilidade do devedor originário. Se existir um ou outro caso de incumprimento daqueles últimos, o banco credor originário acarretará com o prejuízo, sem afetar a cascata. O problema surge em caso de crise, se muitos devedores caem na falência ou no desemprego, deixando de pagar e se as garantias se desvalorizam, impedindo o banco de recuperar o valor ainda em dívida; foi o que aconteceu com os célebres subprimes, em finais de 2007, empréstimos de muito alto risco, concedidos a famílias pobres aliciadas pela insinuação das instituições financeiras de que as suas casas se estavam a valorizar e que poderiam, aumentar o seu endividamento usando-as como garantia. Até que…

No seguimento da crise financeira de 2007/08 e apesar da sua violência os Estados e o sistema financeiro não levaram a cabo as medidas anunciadas de redução da dimensão dos bancos e do volume de dívida, maior regulação, produtos derivados menos complexos, etc. O susto entrou em choque com a sobrevivência da máquina especulativa que sustenta o capitalismo neoliberal de hoje, foi-se embora mas, olha apreensivo a plúmbea cor do céu.

O referido espírito de sobrevivência associado à domesticação das classes políticas e à ausência de contestação social significativa conduziram a que, pelo contrário, o sistema bancário e o endividamento tenham crescido, as fusões e a concentração de capitais não tenham abrandado, ultrapassando mesmo as registadas antes da crise e que 45% das transações passem longe do nariz dos majestáticos reguladores que, por essa razão, melhor receberiam o epíteto de passadores[7]. Segundo a mesma fonte o endividamento global atinge 285% do PIB e os preços das ações crescem sem correspondência com o desempenho das empresas, na sequência da emissão descuidada de meios financeiros pelos bancos centrais e "cujo desenlace é tipicamente o rebentamento”. Afirma-se ainda que é enorme o risco para os supervisores Fed e BCE que detêm em obrigações públicas ou privadas o correspondente a 13% e 9% do PIB dos EUA e da Zona Euro, respetivamente. Para o efeito considera-se no mesmo artigo que é preciso sair da conjuntura de baixíssimas taxas de juro mas que isso será dramático se não acompanhado por crescimentos assinaláveis no rendimento das famílias e das empresas; o que se afigura muito difícil de acontecer pois a elevação das taxas de juro, associadas a uma menor emissão monetária provoca acrescidas dificuldades a empresas e maiores encargos estatais com a dívida.

(continua)

Este e outros textos em:




[1] Esse economicismo em total sintonia com os compêndios de desenvolvimento capitalista, na sua actual versão neoliberal encontra uma liminar afirmação no Projeto de resolução 456/XII (2ª) de 19/9/2012 apresentado pelo PCP à Assembleia da República, visando a renegociação da dívida pública e do qual extraímos as preciosas afirmações seguintes.
·        “… tal como o PCP sempre afirmou, a consolidação das contas públicas e a redução da dívida pública tem de ser obtida com o crescimento económico…” (pag. 2) o que significa que em Portugal, se terá de trabalhar mais e mais, sem que se considere qualquer alteração na relação capital/trabalho, formas de redistribuição de rendimentos, etc;
·        “Renegociar a dívida é garantir afinal o seu pagamento que não será possível sem a criação de riqueza” (pag. 3); isto é, se forem bonzinhos pagaremos para todo o sempre a dívida que nos obrigarem a assumir, tornar-nos-emos vossos dedicados rendeiros. Na realidade, não há criação de riqueza que não seja constituída como renda a favor do sistema financeiro, sendo a reestruturação a efetivar-se, um mero brinde de supermercado;
·        A “determinação completa e rigorosa da dimensão da dívida… a levar a efeito pelo Ministério das Finanças e o BdP”; na realidade, confia-se na isenção, no amor ao povo da coligação PSD/CDS, liderada pelo psicopata Passos, para avaliação da dívida, como se ela resultasse apenas de contratos mal feitos e não da montagem pelo sistema financeiro de uma engrenagem de captura dos povos periféricos da Europa. Recorde-se que antes das eleições ganhas pelo PSD, o seu chefe Passos Coelho referiu, junto de Angela Merkel, numa viagem para a sua apresentação pela Europa que iria fazer uma auditoria à dívida, ideia que foi desde logo rebatida pela chanceler.
·        Em finais de 2011, surge a IAC – Iniciativa para uma Auditoria Cidadã, sob os auspícios do BE, lançada com pompa e circunstância com a presença de altos técnicos estrangeiros e os habituais monos da intelligentsia unitária lusa. Em maio de 2013, a IAC declara a sua total falência com uma proposta hilariante, se não fosse absolutamente reacionária.
[2]  O golem, na interpretação dada por António Negri e Michael Hardt em “Multidão”
[3] Não utilizamos esta acepção de capital financeiro que nos parece ultrapassada pela realidade. Preferimos considera-lo como o conjunto de ações, obrigações, títulos de dívida, posições acionistas, derivados e outros, transacionados dentro ou fora das bolsas, detidos por um opaco e volúvel conjunto de empresas, fundos, meras siglas de registos offshore, que tomam empresas produtoras de bens ou serviços, simples mercadorias (as commodities) e contratos de seguro ou transporte, como instrumentos de especulação, sempre numa lógica rentista de geração e acumulação de capitais.
[4]  Sobre esta dicotomia entre arranjos do capital ver “Capitalismo contra Capitalismo” de Michel Albert (1992)
[5] Mesmo elementos de grande relevância para o conhecimento da realidade são objeto de grandes discrepâncias reveladoras da incapacidade de aferição das dimensões dos problemas. A revista “Emerging Markets” media, recentemente, a dívida pública e privada, não financeira, em $ 162 biliões contra $ 152 biliões apontados pelo FMI. Porém, a revista acrescentava ainda a dívida das entidades financeiras ($ 54 biliões) – que o FMI não considera - o que coloca a dívida global na fasquia dos $ 216 biliões, o correspondente a 327% do PIB mundial; isto é, mais de três anos de rendimentos gerados pela população mundial!
[6]  No entanto, sempre que algum banco entra em colapso é a população do país onde se sedia que é chamada a contribuir para cobrir os créditos incobráveis transformados em prejuízos e estes, a obrigarem a recapitalização ou falência, como exemplarmente se observou nos casos BPN, Banif ou BES, em Portugal e, de modo mais extensivo, em Espanha, entre outros. Dito de outro modo, os lucros são alegremente transferidos para os offshores; os prejuízos, esses ficam em casa.

[7] Carlos Costa brilhou no casos BES e Banif como Vítor Constâncio havia ganho, no âmbito do BPN, o prestígio suficiente para se sentar numa vice-presidência do BCE