terça-feira, 8 de dezembro de 2015

Viva Saramago! Sempre!

José Saramago
Foto de Ana Baião, EXPRESSO


Aqui, na íntegra, o texto inédito de José Saramago sobre a democracia e o poder político, lido numa conferência em Sevilha em 1991, aquando 
da comemoração do quinto centenário dos Descobrimentos. Um texto que se mantém completamente atual. 
Publicado no EXPRESSO de 18.06.2015.


Abro com duas citações de Aristóteles, ambas extraídas de Política. A primeira delas, curta, sintética, diz-nos que “em democracia, os pobres são soberanos, com exclusão dos ricos, porque são eles o maior número, e porque a vontade da maioria é lei”. A segunda, que, começando por anunciar uma restrição ao alcance da primeira, não só, afinal de contas, a alarga e completa, como a si própria praticamente se alcandora à altura de um axioma, esse princípio que, por evidente, não requer, para convencer, o esforço de uma demonstração. Eis o que nos diz a citação segunda: “A igualdade (no Estado) pede que os pobres não tenham mais poder que os ricos, que não sejam eles os únicos soberanos, mas que o sejam todos na proporção do número existente de uns e outros. Este parece ser o meio de garantir ao Estado, eficazmente, a igualdade e a liberdade”. Se não estou demasiado equivocado na interpretação desta passagem, o que Aristóteles nos está a dizer aqui é que os cidadãos ricos, embora participando, com toda a legitimidade democrática, no governo da polis, sempre estariam em minoria nele, pelo simples efeito de uma proporcionalidade imperativa e incontestável. Em algo Aristóteles acertava: que se saiba, ao longo de toda a História, jamais os ricos foram em maior número que os pobres. Mas esse acerto do filósofo de Estagira, pura obviedade aritmética, estilhaça-se contra a dura muralha dos factos: os ricos foram sempre aqueles que governaram o mundo ou que sempre tiveram quem por eles governasse. E hoje, provavelmente, mais do que nunca. Não resisto a recordar-vos, sofrendo com a minha própria ironia, que, para o discípulo de Platão, o Estado era a forma superior da moralidade...

Qualquer manual elementar de Direito Político nos informará que a democracia é “uma organização interna do Estado em que cabe ao povo a origem e o exercício do poder político, uma organização em que o povo governado governa por intermédio dos seus representantes”, ficando assim asseguradas, acrescentará o dito manual, “a intercomunicação e a simbiose entre governantes e governados, no quadro de um Estado de direito”. Em minha modesta opinião, aceitar acriticamente definições como esta, sem dúvida de uma pertinência e de um rigor formal que quase tocam a fronteira das ciências exactas, corresponderia, se nos transportássemos ao quadro pessoal da nossa quotidianidade biológica, a não dar atenção à gradação infinita de estados mórbidos, patológicos ou degenerativos de diversa gravidade que é possível, em cada momento, perceber no nosso próprio corpo. Expressando-me de outra maneira: o facto de a democracia poder ser definida de acordo com as fórmulas antes citadas, ou outras igualmente equivalentes em precisão e rigor, não significa que como real e efectiva democracia tenhamos de caracterizá-la em todos os casos e circunstâncias, só porque ainda é possível, quando o seja, reencontrar e identificar, no conjunto dos seus órgãos institucionais e das suas estruturas, algum ou alguns dos traços que nas referidas definições se explicitem ou que nela estejam implícitos.

Uma breve e primária incursão pela história das ideias políticas vai servir-me para trazer à colação duas questões simples que, sendo do conhecimento de toda a gente, são também, não obstante, e com o costumado argumento de que os tempos mudaram, postos de lado e desconsiderados sempre que se apresente a ocasião de reflectir, não já sobre meras definições de democracia, mas sobre a sua substância concreta. A primeira questão recordar-me-á que a democracia apareceu na Grécia clássica, mais exactamente em Atenas, por alturas do século V antes de Cristo; que essa democracia pressupunha a participação de todos os homens livres no governo da cidade; que se baseava na forma directa, sendo efectivos todos os cargos, ou atribuídos segundo um sistema misto de sorteio e eleição; que os cidadãos tinham direito a votar e a apresentar propostas nas assembleias populares.

Porém (e esta é a minha segunda questão), em Roma, continuadora e herdeira imediata das inovações civilizadoras dos Gregos, o sistema democrático, apesar das provas dadas no país de origem, não conseguiu ser estabelecido. Conhecemos as razões. A par de alguns outros factores adjuvantes, no entanto de menor importância social e política, o principal e definitivo obstáculo à implantação da democracia em Roma proveio do enorme poder económico de uma aristocracia fundiária que, muito justificadamente, via no sistema democrático um inimigo directo dos seus interesses. Embora tendo presente o risco de generalizações abusivas a que as extrapolações de tempo e de lugar sempre nos podem levar, é irresistível que me interrogue sobre se os impérios económicos e financeiros dos nossos dias, multinacionais e pluricontinentais, não estarão, eles também, fiéis à exclusiva e implacável lógica dos interesses, a trabalhar, fria e deliberadamente, para a eliminação progressiva de uma possibilidade democrática que, cada vez mais afastada temporalmente das suas indecisas expressões de origem, vai a caminho de um rápido estiolamento, por enquanto ainda mantida nas suas formas exteriores, mas profundamente desvirtuada na sua essência. Pergunto-me até que ponto poderão dar-nos garantias de uma acção realmente democrática as diversas instâncias do poder político quando, aproveitando-se da legitimidade institucional que lhes adveio da eleição popular, tentam desviar a nossa atenção da evidência palmar de que no mesmíssimo processo da votação já se encontravam presentes, e em conflito, por um lado, a expressão de uma opção política representada materialmente pelo voto e, por outro lado, a demonstração involuntária de uma abdicação cívica na maior parte dos casos sem consciência de si mesma? Por outras palavras: não será verdade que, no mesmo exacto instante em que o seu voto foi introduzido na urna, o eleitor transferiu para outras mãos, na prática e sem mais contrapartidas que as promessas que lhe haviam sido feitas durante a campanha eleitoral, a parcela de poder político que até esse momento lhe pertencera de legítimo direito como membro da comunidade de cidadãos?

Parecer-vos-á talvez imprudente da minha parte este papel de advogado do Diabo que aqui estou parecendo assumir, ao começar por denunciar o vazio instrumental que, nos nossos sistemas democráticos, separa aqueles que elegeram daqueles que foram eleitos, para logo a seguir, e sem ao menos recorrer à habilidade retórica de uma transição preparatória, passar a interrogar-me sobre a pertinência e a propriedade efectivas dos distintos processos políticos de delegação, representação e autoridade democrática.

Uma razão mais para que nos detenhamos um pouco a ponderar sobre o que a nossa democracia é e para que serve, antes de pretendermos, como se tornou moda do tempo, que ela se torne obrigatória e universal. Porque esta caricatura de democracia que, como missionários de uma nova religião, andamos a querer, pela persuasão ou pela força, difundir e instalar no resto do mundo, não é a democracia dos sábios e ingénuos Gregos, mas aquela outra que os pragmáticos Romanos teriam implantado nas suas terras se nela tivessem visto alguma utilidade prática, como ouso dizer que está a suceder à nossa volta neste começo de milénio, agora que a temos aí diminuída e rebaixada por mil e um condicionantes de toda a espécie (económicos, financeiros, tecnológicos, estruturais), os quais, não nos reste nenhuma dúvida, teriam levado os latifundistas do Lácio a mudar rapidamente de ideias, tornando-se nos mais activos e entusiásticos “democratas”... Chegados a esta altura do discurso, é mais do que provável que no espírito de muitos dos que até agora me têm escutado com benevolência principie a despontar a incómoda suspeita de que o orador, afinal de contas, não tem nada de democrata, o que, como não deixariam os mais informados e argutos de acrescentar, pertenceria ao domínio das verdades óbvias, conhecidas como geralmente são as minhas inclinações ideológicas e políticas... Que não é este o lugar nem este o momento de justificar ou defender, já que apenas me propus trazer aqui algo do que tenho pensado sobre a ideia, a suposição, a convicção, a esperança de que estejamos caminhando, todos juntos, em direcção a um mundo realmente democratizado, caso em que estaríamos convertendo em realidade, dois milénios e meio depois de Sócrates, Platão e Aristóteles, e num nível superior de consecução, a quimera grega de uma sociedade harmoniosa, agora já sem diferença entre senhores e escravos, segundo dizem as almas cândidas que ainda acreditam na perfeição... Uma vez que as democracias a que redutoramente temos chamado ocidentais não são censatárias nem racistas, uma vez que o voto do cidadão mais rico ou de pele mais clara pesa e conta tanto nas urnas como o do cidadão mais pobre ou de pele mais escura, que o mesmo é dizer, colocando as aparências no lugar das realidades, nós teríamos alcançado o grau óptimo de uma democracia de teor resolutamente igualitário, à qual só estaria a faltar uma mais ampla cobertura geográfica para se tornar no suspirado sucedâneo político das panaceias universais da antiguidade médica. Ora, se me é permitido lançar alguma água fria nestes superficiais e unânimes fervores, direi que a realidade brutal do mundo em que vivemos torna definitivamente irrisórios os traços idílicos do quadro que acabo de descrever, e que sempre, de uma maneira ou de outra, acabaremos por encontrar, por fim já sem surpresa, um corpo autoritário particular sob as roupagens democráticas gerais. Tentarei explicar-me melhor. Ao afirmar que o acto de votar, sendo obviamente expressão de uma vontade política determinada, é também, em simultâneo, um acto de renúncia ao exercício dessa mesma vontade, implicitamente manifestado na delegação operada pelo poder próprio do votante, ao afirmá-lo, repito, coloquei-me tão somente no primeiro limiar da questão, sem considerar então outros prolongamentos e outras consequências do acto eleitoral, quer do ponto vista institucional, quer do ponto de vista dos diversos estratos políticos e sociais em que decorre a vida da comunidade de cidadãos. Observando agora as coisas mais de perto, creio poder concluir que sendo o acto de votar, objectivamente, pelo menos em grande parte da população de um país, uma forma de renúncia temporal à acção política que deveria ser-lhe natural e permanente, mas que se vê adiada e posta em surdina até às eleições seguintes, altura em que os mecanismos delegatórios recomeçarão do princípio para da mesma maneira virem a terminar, ela, essa renúncia, poderá ser, não menos objectivamente, para a minoria dos eleitos, o primeiro passo de um processo que, estando democraticamente justificado pelos votos, não raras vezes prossegue, contra as baldadas esperanças dos iludidos votantes, objectivos que de democráticos nada têm e que poderão até, na sua concretização, chegar a ofender frontalmente a lei. Em princípio, a nenhuma comunidade mentalmente sã lhe passaria pela cabeça a ideia de eleger traficantes de armas e de drogas ou, em geral, indivíduos corruptos e corruptores para seus representantes nos parlamentos ou nos governos, porém, a amarga experiência de todos os dias mostra-nos que o exercício de amplas áreas do poder, tanto em âmbitos nacionais como internacionais, se encontra nas mãos desses e de outros criminosos, ou dos seus mandatários políticos directos e indirectos. Nenhum escrutínio, nenhum exame microscópico dos votos lançados numa urna seria capaz de tornar visíveis, por exemplo, os sinais denunciadores das relações de concubinato entre a maioria dos Estados e grupos económicos e financeiros internacionais cujas acções delituosas, incluindo aqui as bélicas, estão a levar à catástrofe o planeta em que vivemos.

Aprendemos dos livros, e as lições da vida o confirmam, que, por mais equilibradas que se apresentem as suas estruturas institucionais e respectivo funcionamento, de pouco nos servirá uma democracia política que não tenha sido constituída como raiz e razão de uma efectiva e concreta democracia económica e de uma não menos concreta e efectiva democracia cultural. Dizê-lo nos dias de hoje há-de parecer, mais que uma banalidade, um exausto lugar-comum herdado de certas inquietações ideológicas do passado, mas seria o mesmo que fechar os olhos à realidade das ideias não reconhecer que aquela trindade democrática — a política, a económica, a cultural —, cada uma delas complementar das outras, representou, no tempo da sua prosperidade como projecto de futuro, uma das mais congregadoras bandeiras cívicas que alguma vez, na história recente, foram capazes de comover corações, abalar consciências e mobilizar vontades. Hoje, pelo contrário, desprezadas e atiradas para a lixeira das fórmulas que o uso, como a um sapato velho, cansou e deformou, a ideia de uma democracia económica, por muito relativizada que tivesse de ser, deu lugar a um mercado obscenamente triunfante, e a ideia de uma democracia cultural foi substituída por uma não menos obscena massificação industrial das culturas, esse falso melting-pot com que se pretende disfarçar o predomínio absoluto de uma delas. Cremos haver avançado, mas, de facto, retrocedemos. E cada vez se irá tornando mais absurdo falar de democracia se persistirmos no equívoco de identificá-la com as suas expressões quantitativas e mecânicas, essas que se chamam partidos, parlamentos e governos, sem proceder antes a um exame sério e conclusivo do modo como eles utilizam o voto que os colocou no lugar que ocupam.

Uma democracia que não se auto-observe, que não se auto-examine, que não se autocritique, estará fatalmente condenada a anquilosar-se. Não se conclua do que acabo de dizer que estou contra a existência dos partidos: sou militante de um deles. Não se pense que aborreço os parlamentos: querê-los-ia, isso sim, mais laboriosos e menos faladores. E tão-pouco se imagine que sou o inventor de uma receita mágica que, doravante, permitirá aos povos viverem felizes sem governos: apenas me recuso a admitir que só seja possível governar e desejar ser governado de acordo com os modelos democráticos em uso, a meu ver incompletos e incoerentes, esses modelos que, numa espécie de assustada fuga para a frente, pretendemos tornar universais, como se, no fundo, só quiséssemos fugir dos nossos próprios fantasmas, em vez de os reconhecer como o que são e trabalhar para vencê-los. Chamei “incompletos” e “incoerentes” aos modelos democráticos em uso porque realmente não vejo como se possa designá-los de outra maneira.

Uma democracia bem entendida, inteira, redonda, irradiante, como um sol que por igual a todos ilumine deverá, em nome da pura lógica, começar por aquilo que temos mais à mão, isto é, o país onde nascemos, a sociedade em que vivemos, a rua onde moramos. Se esta condição primária não for observada, e a experiência de todos os os dias diz-nos que não o é, todos os raciocínios e práticas anteriores, quer dizer, a fundamentação teórica e o funcionamento experimental do sistema, estarão, desde o início, viciados e corrompidos. De nada adiantará limpar as águas do rio à sua passagem pela cidade se o foco contaminador estiver na nascente. Vimos já como se tornou obsoleto, fora de moda, e até mesmo ridículo, invocar os objectivos humanistas de uma democracia económica e de uma democracia cultural, sem os quais o que designamos por democracia política ficou limitado à fragilidade de uma casca, acaso brilhante e colorida de bandeiras, cartazes e palavras de ordem, mas vazia de conteúdo civicamente nutritivo. Querem, porém, as circunstâncias da vida actual que até mesmo essa delgada e quebradiça casca das aparências democráticas, ainda preservadas pelo impenitente conservadorismo do espírito humano, ao qual costumam bastar as formas exteriores, os símbolos e os rituais para continuar a acreditar na existência de uma materialidade já carecida de coesão ou de uma transcendência que deixou perdidos pelo caminho o sentido e o nome — querem as circunstâncias da vida actual, repito, que as cintilações e as cores que até agora têm adornado, diante dos nossos resignados olhos, as desgastadas formas da democracia política, se estejam a tornar rapidamente baças, sombrias, inquietantes, quando não impiedosamente grotescas como a caricatura de uma decadência que se vai arrastando entre chufas de desprezo e uns últimos aplausos irónicos ou de interessada conveniência.

Como sempre aconteceu desde o começo do mundo e sempre continuará a acontecer até ao dia em que a espécie humana se extinga, a questão central de qualquer tipo de organização social humana, da qual todas as outras decorrem e para a qual, mais cedo ou mais tarde, todas acabam por concorrer, é a questão do poder, e o principal problema teórico e prático com que nos enfrentamos consistirá na necessidade de identificar quem o detém, de averiguar como chegou a ele, de verificar o uso que dele faz, os meios de que se serve e os fins a que aponta. Se a democracia fosse, de facto, o que com autêntica ou simulada ingenuidade continuamos a dizer que é, o governo do povo, pelo povo e para o povo, qualquer debate sobre a questão do poder deixaria de ter sentido, uma vez que, residindo o poder no povo, seria ao povo que competiria a sua administração, e, sendo o povo a administrar o poder, está claro que só o poderia fazer para o seu próprio bem e para a sua própria felicidade, pois a isso o estaria obrigando aquilo a que chamo, sem qualquer aspiração a um mínimo de rigor conceptual, a lei da conservação da vida. Ora, só um espírito perverso, panglossiano até ao cinismo, teria a ousadia de afirmar que o mundo em que vivemos é satisfatoriamente feliz, este mundo que, pelo contrário, ninguém deveria pretender que o aceitemos tal qual é, só pelo facto de ser, repetindo o conhecido nariz-de-cera, o melhor dos mundos possíveis. Também insistentemente se afirma que a democracia é o menos mau sistema político de todos quantos até hoje se inventaram, e não se repara que talvez esta conformidade resignada com uma coisa que se contenta com ser “a menos má” seja o que nos anda a travar o passo que porventura seria capaz de conduzir-nos a algo “melhor”.

Por sua própria natureza e definição, o poder democrático será sempre provisório e conjuntural, dependerá da instabilidade do voto, da flutuação das ideologias e dos interesses das classes, e, como tal, pode até ser visto como uma espécie de barómetro orgânico que vai registando as variações da vontade política da sociedade. Mas, ontem como hoje, e hoje com uma amplitude cada vez maior, abundam os casos de alterações políticas aparentemente radicais que tiveram como efeito radicais alterações de governo, mas a que não se seguiram as alterações sociais, económicas e culturais igualmente radicais que o resultado do sufrágio havia prometido.

Efectivamente, dizer hoje “governo socialista”, ou “social-democrata”, ou “democrata-cristão”, ou “conservador”, ou “liberal”, e chamar-lhe “poder”, é como uma operação de cosmética, é pretender nomear algo que não se encontra onde se nos quer fazer crer, mas sim em outro e inalcançável lugar — o do poder económico —, esse cujos contornos podemos perceber em filigrana

por trás das tramas e das malhas institucionais, mas que invariavelmente se nos escapa quando tentamos chegar-lhe mais perto e que inevitavelmente contra-atacará se alguma vez tivermos a louca veleidade de reduzir ou disciplinar o seu domínio, subordinando-o às pautas reguladoras do interesse geral. Por outras e mais claras palavras, afirmo que os povos não elegeram os seus governos para que eles os “levassem” ao mercado, e que é o mercado que condiciona por todos os modos os governos para que lhe “levem” os povos.

E, se assim falo do Mercado (agora com maiúscula), é por ser ele, nos tempos modernos, o instrumento por excelência do autêntico, único e insofismável poder realmente digno desse nome que existe no mundo, o poder económico e financeiro transnacional e pluricontinental, esse que não é democrático porque não o elegeu o povo, que não é democrático porque não é regido pelo povo, que finalmente não é democrático porque não visa a felicidade do povo.

Não faltarão sensibilidades delicadas para considerarem escandaloso e gratuitamente provocador o que acabo de dizer, mesmo que tenham de reconhecer que não fiz mais que enunciar algumas verdades transparentes e elementares, uns quantos dados correntes da experiência de todos nós, simples observações do senso comum. Sobre essas e outras não menos claras obviedades, porém, têm imposto as estratégias políticas de todos os rostos e cores um prudente silêncio a fim de que não ouse alguém insinuar que, conhecendo a verdade, andamos a cultivar a mentira ou dela aceitamos ser cúmplices.

Enfrentemos, portanto, os factos. O sistema de organização social que até aqui temos designado como democrático tornou-se cada vez mais numa plutocracia (governo dos ricos) e cada vez menos uma democracia (governo do povo). É impossível negar que a massa oceânica dos pobres deste mundo, sendo geralmente chamada a eleger, não é nunca chamada a governar (os pobres nunca votariam num partido de pobres porque um partido de pobres não teria nada para prometer-lhes). É impossível negar que, na mais do que problemática hipótese de que os pobres formassem governo e governassem politicamente em maioria, como a Aristóteles não repugnou admitir na Política, ainda assim não disporiam dos meios para alterar a organização do universo plutocrático que os cobre, vigia e não raramente afoga. É impossível não nos apercebermos de que a chamada democracia ocidental entrou em um processo de transformação retrógrada que é totalmente incapaz de parar e inverter, e cujo resultado tudo faz prever que seja a sua própria negação. Não é preciso que alguém assuma a tremenda responsabilidade de liquidar a democracia, ela já se vai suicidando todos os dias. Que fazer, então? Reformá-la?

Demasiado sabemos que reformar algo, como escreveu o autor de “Il Gattopardo”, não é mais que mudar o suficiente para que tudo se mantenha igual.


Regenerá-la? A qual visão suficientemente democrática do passado valeria a pena regressar para, a partir dela, reconstruir com novos materiais o que hoje está em vias de se perder? À da Grécia antiga? À das cidades e repúblicas mercantis da Idade Média? À do liberalismo inglês do século XVII? À do enciclopedismo francês do século XVIII? As respostas seriam com certeza tão fúteis quanto já o foram as perguntas... Que fazer, então? Deixar de considerar a democracia como um dado adquirido, definido de uma vez e para sempre intocável. Num mundo que se habituou a discutir tudo, uma só coisa não se discute, precisamente a democracia. Melífluo e monacal, como era seu estilo retórico, Salazar, o ditador que governou o meu país durante mais de quarenta anos, pontificava: “Não discutimos Deus, não discutimos a Pátria, não discutimos a Família”. Hoje discutimos Deus, discutimos a pátria, e só não discutimos a família porque ela própria se está a discutir a si mesma. Mas não discutimos a democracia. Pois eu digo: discutamo-la, meus senhores, discutamo-la a todas as horas, discutamo-la em todos os foros, porque, se não o fizermos a tempo, se não descobrirmos a maneira de a reinventar, sim, de a re-inventar, não será só a democracia que se perderá, também se perderá a esperança de ver um dia respeitados neste infeliz planeta os direitos humanos.


José Saramago

quinta-feira, 5 de novembro de 2015

Não sei se isto é de esquerda ou de direita, sei que isto é ser um bom grego.



(vídeo) Parte de uma intervenção de JPacheco Pereira:


(...)

Falemos de patriotismo.

Imaginemos 1640 e os conjurados, imaginemos 1765 e os colonos americanos, imaginemos 1940 e os franceses que ouviam a palavras de Pétain após a capitulação, tudo situações muito diversas, mas com uma coisa em comum.

Os portugueses, os colonos americanos e os franceses, todos ouviram as mesmas palavras, todos ouviram os mesmos sábios conselhos, todos escutaram apelos à razão, à realidade, ao realismo, à sensatez, à passividade, à prudência, ao respeito por quem manda, à ordem estabelecida. Todos também ouviram algumas ameaças: deixem-se estar quietos porque as consequências serão terríveis, não tenham veleidades que não vão conseguir alguma coisa, as coisas são como são, a realidade é muito forte e quem a contestar verá cair-lhe sobre o corpo toda a força dos poderosos.

A realidade. Falemos da realidade. Ou, como dizem alguns neo-filósofos da direita, que confundem ignorância com desenvoltura e topete, a p.d.r., a p…. da realidade que atiram à cara dos que dizem que há alternativas.

Isso é tudo muito bonito, dizem, muito solidário, muito nobre,  mas e a p.d.r.?

Vamos pois devolver-lhes a realidade com juros. Com juros como os da Grécia.

Havia algo de pior do que a realidade, do que a que existia em 1640, 1765 e em 1940? A realidade em 1640 eram os Filipes e Miguel de Vasconcelos, em 1765 eram os casacas vermelhas e os seus mosquetes, os barcos de Sua Majestade Jorge III e os mercenários do Hesse e. em 1940, as tropas do Reich de 1000 anos mais a Gestapo, a que em breve se juntaram as milícias e a polícia francesa.

Em matéria de p.d.r. é difícil haver melhor. Os tecnocratas da troika e os seus mandantes políticos são anjinhos comparados com estes mandatários da realidade. Da p.d.r.

 Mas não chegou, não era assim tão realidade como isso, havia, como há sempre, outras realidades, as que nós fazemos.

A Duquesa de Bragança queria ser rainha pelo menos por um dia e, como nestas coisas as mulheres costumam ir à frente, disse ao seu homem para conspirar. A realidade ameaçava-lhe separar a cabeça do corpo, mas ele e os 40 conjurados acabaram por enviar Miguel de Vasconcelos pela janela a bombar e devolver à origem a outra Duquesa, a de Mântua. A I República, e bem, resolveu que o 1º de Dezembro tinha que ser feriado e os nossos patriotas de bandeirinha à lapela, acabaram com ele. É que os conjurados deviam ser radicais e do Syriza.

A realidade devia dizer ao senhor Benjamin Franklin que podia fazer uma startup  com os seus para-raios, a John Adams que podia ser um bom advogado de negócios de Boston, ao senhor Hamilton um eficaz administrador colonial, ao senhor Jefferson um scholar erudito, ao senhor Washington um bom agricultor e a mil e um dos “pais fundadores” que podiam ser apenas...  pais.

Mas a outra realidade disse-lhes que “no taxation without representation”, e que o Parlamento inglês não devia mandar nos colonos americanos que não o elegiam. O resultado é que o chá foi para o fundo do Porto de Boston e apareceram umas bandeiras com uma víbora e que diziam: “não me pises”. “Não me pises”, foi assim que foi fundado esse tenebroso país esquerdista e irreal, os EUA.

Em 1940, - quanto mais perto de nós, mais a realidade é dura, -  o que é que Pétain disse aos franceses? Aceitem a realidade. E a realidade é a ocupação alemã. E quais são os interesses da França? Colaborar com o ocupante, ser bom aluno da Nova Ordem Europeia e fazer o sale boulot dos alemães: perseguir os judeus, executar os resistentes, combater ao lado das SS. Era o “trabalho de casa”.

Mas havia em França uns irrealistas criminosos, um radical esquerdista chamado De Gaulle que foi para Londres apelar à revolta contra a realidade. Franceses tão radicais como ele, como Jean Moulin, e franceses menos radicais do que ele, os comunistas depois do fim do Pacto Germano-Soviético, começaram a trabalhar contra a realidade. E depois foi o que se viu.

 Amigos, companheiros e camaradas

Eu gosto do meu país. É o meu povo, a minha língua, as minhas palavras e as dos meus, falem "assim" ou "axim", digam "vaca" ou digam "baca", digam "feijão verde" ou "vagens".  Portugal é, ou devia ser, o único sítio onde o meu voto manda. Mas o meu voto manda cada vez menos. Como para os revolucionários americanos, também no meu país, há “taxation without representation”. Também no meu país há colaboração, submissão, diktats, Também no meu país, a realidade é feita de mentiras.

É por isso que o destino dos gregos não me é indiferente, bem pelo contrário.

Não quero saber se o governo grego está a fazer tudo bem ou não. Não quero saber se Varufakis é arrogante ou não. Nem, verdadeiramente, o meu julgamento sobre os gregos está dependente de eles terem sucesso ou não.

O que eu sei é que houve um governo na União Europeia que resistiu a cortar mais salários e pensões a quem já tinha visto salários e pensões cortadas.

Podem falhar, mas resistiram.

O que eu sei é que houve um governo que quis defender o seu país de ser controlado por estrangeiros e por uma burocracia transnacional de tecnocratas pedantes que detestam a democracia e “esnobam” dos políticos.  Os "adultos" que estão na sala.

 Podem falhar, mas resistiram.

O que eu sei é que houve um governo que quis ser fiel às suas promessas eleitorais e que não quis ser uma versão grega do Senhor Holande, nem dos socialistas que acham que são membros suplentes do PPE.

 Podem falhar, mas resistiram.

Não sei se isto é de esquerda ou de direita, sei que isto é ser um bom grego. E isso é um exemplo que nós queremos seguir, para sermos bons portugueses, que gostam do seu país e do seu povo.

Perante uma realidade iníqua há um valor moral em tentar criar outra realidade que não comece por p..


Se há coisa que a história mostra é que vale a pena.

domingo, 1 de novembro de 2015

Não gostas de Política? Este texto é para ti.



Isto, é como a salada. Não aprecias enquanto és criança, porque não provas, porque é chato, porque é comida para adultos, e ninguém te mostra como pode saber bem. Dizer “faz-te bem à saúde!” não chega. Tens de crescer, entender em que é que os legumes te beneficiam, forçar-te a experimentar e, passado um tempo, já nenhuma refeição te sabe ao mesmo sem a bela saladinha.
A política é a alface da história.
Não gostas de política? Não entendes isto de ser de Direita ou de Esquerda? Não fazia mal… Sim, não “fazia” mal… É que agora cresceste.
Tudo, ou quase tudo o que te rodeia é política. A tua conta da água, a quantidade de horas que trabalhas, quanto recebes, quanto descontas, a educação do teu filho, o apoio à tua saúde, a emigração da tua amiga, as dificuldades do teu irmão ao abrir um negócio…(podíamos estar aqui o dia todo).
Eu sei que é difícil não perder o fio à meada. Mas talvez não precises de perceber, de início, a meada toda.
A única coisa necessária é que saibas quem és e o que defendes. Que te perguntes quais são os temas que não te deixam ficar calada. Não interessa se são os mesmos que os meus, ou se estão certos para quem quer que seja. Desde que estejam certos para ti.
Eu, por exemplo, sei que sou pela igualdade. Por todas, e a todos os níveis. É o que mais me define. Também acredito que quem trabalha e produz mais, deve receber mais e que mesmo quem não produz nada tem direito, no mínimo, à dignidade. Então, procurei o partido que melhor me representa. E encontrei. Tu, se te deres a esse trabalhinho, também vais encontrar. Ou até fiques dividida. Ou não gostes de nenhum. Não importa. O que importa é que queiras saber!
O que tens, realmente, é de saber quem és, quem queres ser, e como queres ser lembrada. A partir daí é fácil. É só garantires que nunca irás dar o teu apoio a quem pensa de forma contrária à tua. Usares a tua espada – o voto – para impedir que o poder chegue às mãos de quem ofende as tuas convicções.
Eu já decidi. Quero viver num país onde, independentemente da minha aparência, profissão, classe social, orientação sexual ou etnia, tenha tal e qual os mesmos direitos, tal e qual os mesmos deveres, do meu vizinho do lado. Seja ele quem for.
E tu? Queres continuar a ser aquela que diz: “Calem-se com política! Vamos falar
de coisas interessantes! Afinal onde é o jantar de sábado?!”? E o que vais responder à tua filha, quando te fizer uma pergunta difícil, porque quer ser uma mulher informada?
Vais continuar a fingir que “são todos iguais!”, só porque, na verdade, tens tido demasiada preguiça para te interessares sobre as decisões que estão a ser tomadas em relação à tua vida?
Ou vais, finalmente, começar a apreciar salada?



Catarina Corvo

in http://mariacapaz.pt/cronicas/nao-gostas-de-politica-este-texto-e-para-ti-por-catarina-corvo/view-all/





domingo, 25 de outubro de 2015

Doce embalo

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Democratizar a zona euro





Tal como Macbeth, os decisores políticos tendem a cometer novos pecados para encobrir os seus erros passados. E os sistemas políticos provam o seu valor com a rapidez com que acabam com os erros políticos, em série e que se reforçam mutuamente, dos seus responsáveis. Avaliada segundo este padrão, a zona euro, composta por 19 democracias estabelecidas, fica atrás da maior economia não democrática do mundo.
Após o início da recessão que se seguiu à crise financeira mundial de 2008, os responsáveis políticos da China passaram sete anos a substituir a procura decrescente por exportações líquidas do seu país por uma bolha de investimento interno, dilatada pela venda agressiva de terrenos pelos governos locais. E, quando chegou o momento do acerto de contas neste verão, os líderes da China gastaram 200 mil milhões de reservas externas, que muito custaram a ganhar, para fazerem o papel de Rei Canuto tentando impedir a maré de uma derrocada do mercado de ações.
No entanto, comparado com a União Europeia, o esforço do governo chinês para corrigir os seus erros - acabando por permitir que as taxas de juro e os valores das ações deslizassem - parece ser um modelo de velocidade e eficiência. Na verdade, o fracassado "programa de consolidação orçamental e de reformas" grego e a forma como os líderes europeus se agarraram a ele, apesar dos cinco anos de provas de que o programa não poderia nunca ter sucesso, é sintomático de um fracasso mais alargado da governação europeia, um fracasso com raízes históricas profundas.
No início dos anos 90, a crise traumática do Mecanismo de Taxas de Câmbio Europeu apenas reforçou a determinação dos líderes europeus em apoiá-lo. Quanto mais o regime mostrava ser insustentável, mais obstinadamente os responsáveis se agarravam a ele - e mais otimistas eram as suas narrativas. O "programa" grego é apenas mais uma encarnação da inércia política europeia vista com lentes cor-de-rosa.
Os últimos cinco anos de política económica na zona euro têm sido uma notável comédia de erros. A lista de erros de política é quase interminável: o aumento das taxas de juro pelo Banco Central Europeu em julho de 2008 e novamente em abril de 2011; a imposição da austeridade mais severa às economias que enfrentam a pior crise; tratados autoritários advogando desvalorizações concorrenciais internas à custa dos outros; e uma união bancária que carece de um regime de seguro de depósitos apropriado.
Como conseguem os responsáveis políticos europeus sair impunes? Afinal, a sua impunidade política está em nítido contraste não só com os Estados Unidos, onde os agentes políticos são responsáveis pelo menos perante o Congresso, mas também com a China, onde se poderia pensar que as autoridades políticas seriam menos responsabilizadas do que as suas congéneres europeias. A resposta reside na natureza fragmentada e deliberadamente informal da união monetária da Europa.
Os responsáveis chineses podem não responder perante um Parlamento democraticamente eleito ou um congresso. Mas as autoridades governamentais têm um órgão unitário - o comité permanente de sete membros do Politburo - ao qual eles devem responder pelos seus fracassos. A zona euro, por outro lado, é dirigida pelo oficialmente não oficial Eurogrupo, que compreende os ministros das Finanças dos Estados membros, representantes do BCE e, quando se discutem "programas económicos em que está envolvido", o Fundo Monetário Internacional.
Só muito recentemente, como resultado das intensas negociações do governo grego com os seus credores, os cidadãos europeus perceberam que a maior economia do mundo, a zona euro, é dirigida por um organismo que carece de regras escritas de procedimento, que debate sobre questões cruciais "confidencialmente" (e sem serem feitas atas) e que não é obrigado a responder perante qualquer órgão eleito, nem sequer o Parlamento Europeu.
Seria um erro pensar no impasse entre o governo grego e o Eurogrupo como um confronto entre a esquerda grega e a corrente conservadora europeia. A nossa "Primavera de Atenas" foi sobre algo mais profundo: o direito de um pequeno país europeu de desafiar uma política fracassada que estava a destruir as perspetivas de uma geração (ou duas), não só na Grécia, mas também noutros lugares da Europa.
A "Primavera de Atenas" foi esmagada por razões que não têm nada a ver com a política de esquerda do governo grego. A UE rejeitou e denegriu políticas de mero bom senso, umas atrás das outras.
A prova disto são as posições dos dois lados em política fiscal. Como ministro das Finanças da Grécia propus uma redução da taxa do imposto sobre vendas, do imposto sobre rendimento e do imposto sobre as empresas, a fim de alargar a base tributária, aumentar as receitas e dar um impulso à depauperada economia grega. Nenhum seguidor de Ronald Reagan iria contestar o meu plano. A UE, por outro lado, exigiu - e impôs - aumentos das três taxas de imposto.
Então, se a luta da Grécia com os seus credores europeus não foi um impasse entre a esquerda e a direita, o que foi? O economista americano Clarence Ayres escreveu uma vez, como se estivesse a descrever as autoridades da UE: "Eles prestam à realidade a homenagem de a elevar ao estatuto cerimonial, mas fazem-no com a finalidade de validar o estatuto e não a de alcançar a eficiência tecnológica." E podem fazê-lo porque os decisores da zona euro não são obrigados a responder perante qualquer órgão soberano.
É imperativo que nós, aqueles que desejam melhorar a eficiência da Europa e diminuir as suas graves injustiças, trabalhemos para politizar a zona euro como um primeiro passo para a sua democratização. Afinal de contas, não merecerá a Europa um governo que seja pelo menos mais responsabilizável do que o da China comunista?


Exclusivo DN/Project Syndicate, 2015


por YANIS VAROUFAKIS 2.09.2015


Justiça e equidade





Eugénio de Andrade, num dos seus magníficos poemas, diz:

“  Passamos pelas coisas sem as ver,
gastos, como animais envelhecidos:
se alguém chama por nós não respondemos,
se alguém nos pede amor não estremecemos,
como frutos de sombra sem sabor,
 vamos caindo ao chão, apodrecidos”.

Há uma estranha moral governativa a ensombrar as instituições e a manipulá-las. Uma estranha liderança que nos sufoca e uma impunidade que nos revolta. Estamos reféns de um poder completamente subvertido.

No caso dos professores, os trabalhadores da função pública que mais desconsideração têm sofrido por parte dos governos do nosso país, tratados de forma escandalosamente desigual se comparados com outros agentes do estado constantemente ajudados e protegidos em matéria salarial, em condições perfeitamente adversas, desumanas e imprevisíveis, sobretudo quando colocados muito longe das suas áreas de residência onde penosamente (muitos deles há anos!) aguardavam uma pequena colocação, sem família, sós, muito sós ou longe dos seus filhos ainda menores que têm de abandonar face a uma colocação que, quando surge, os faz correr desesperadamente e tudo deixar, em nome de um tempo de serviço que penosamente vão fazendo ao ritmo sofrido de uma depressão que entretanto se instala e os devora, lentamente, até ao dia em que os vencerá para sempre.

Sem ajudas de ninguém, sem o mísero salário que só tardará, para a maioria, quase ao fim de dois meses por causa das exigências burocráticas e administrativas a que estão sujeitos e cujas custas também pagarão, estes professores-errantes e precários (os antigos “provisórios”), mal sabem de uma colocaçãozinha na Internet, partem a correr à procura da dignidade que tarda e de um gesto de humanidade que jamais lhes deveria ser negado. Nem a eles nem a ninguém.
Nessas escolas onde muito tardiamente encontram uma vaga, em terras de ninguém, fingem um contentamento que entretanto se foi desvanecendo por força de uma espera que em dor se transformou, com dívidas para pagar e um mundo de privações que, entretanto, (já) dificilmente conseguem esconder, até mesmo quando o salário que chega, tarde e pouco, deixa escapar um breve sorriso que já mal esconde a fome há muito instalada e a custo enganada.

A fome, o desalento, a frustração, e tudo em nome de uma profissão e de um trabalho que vocacionalmente abraçaram, certos de um país que a (os) acolheria e atenderia com a mesma seriedade e espírito de entrega com que a escolheram, certos de um trabalho que é fundamental para o verdadeiro desenvolvimento de um povo, um trabalho que tem muito de espírito de missão mas que deve ser retribuído com respeito e com justiça.

Por que razão, por exemplo, os senhores deputados, os senhores magistrados, os senhores gestores, os senhores inspectores, os senhores directores, entre outros profissionais da função pública, têm ajudas de custo (autênticas mordomias) e os professores nada?

Mais grave: por que razão se continuam a atribuir subsídios escandalosos a certos funcionários públicos, que desde sempre auferiram grandes salários, ajudas para o arrendamento de casas ou até casas próprias, ajudas para combustível e até mesmo carros e motoristas próprios, mesmo quando se reformam, enquanto que outros, neste caso, os professores sobre os quais escrevo, mal ganham para comer, passam frio e fome nas terras onde têm de alugar ou uma casita humilde que nem sempre conseguem repartir com outros ou em quartos profundamente desumanizados e miseráveis onde a solidão e o desespero infernizam a vida de tantos jovens docentes, claramente abandonados por um país e governos que sarcasticamente os promovem em discursos eleitoralistas mas que, na prática, os enterram cada vez mais e cada vez em maior número, vivos, em nome de uma recuperação económica e do combate a um défice para o qual nunca contribuíram, agredindo-os violentamente com pedidos de sacrifício e com um discurso demagógico que vergonhosa e despudoradamente continua a ouvir-se nas rádios, televisões e jornais, como se estes professores, estes desgraçados descartáveis e precários da função pública fossem os culpados da monstruosidade económica que nos invadiu mais uma vez e das políticas e políticos criminosos que se aproveitaram do seu voto para fazerem carreira, aqui ou na União Europeia, tanto em lugares da Administração e Gestão de Empresas do Estado como na Banca, Seguros e outros, através do tráfico de influências e da corrupção cujos tentáculos já abarcam todos os sectores da vida nacional e a tornam cada vez mais difícil para quem da vida só conheceu o duro trabalho, privações e injustiça social. 
Nunca é demais recordar as decisões da Assembleia Constituinte, reunida na sessão plenária de 2 de Abril de 1976, que aprovou e decretou a Constituição da República Portuguesa e que tanta gente, tantos políticos e tantos governantes querem esquecer:

Artigo 9.º - Tarefas fundamentais do Estado

São tarefas fundamentais do Estado: (…) d) Promover o bem-estar e a qualidade de vida do povo e a igualdade real entre os portugueses, bem como a efectivação dos direitos económicos, sociais, culturais e ambientais, mediante a transformação e modernização das estruturas económicas e sociais;

Artigo 13.º - Princípio da igualdade

1. Todos os cidadãos têm a mesma dignidade social e são iguais perante a lei; 

Artigo 18.º - Força jurídica

1. Os preceitos constitucionais respeitantes aos direitos, liberdades e garantias são directamente aplicáveis e vinculam as entidades públicas e privadas.

Artigo 25.º - Direito à integridade pessoal

1. A integridade moral e física das pessoas é inviolável;
Artigo 58.º (do TÍTULO III, Direitos e deveres económicos, sociais e culturais - CAPÍTULO I
- Direitos e deveres económicos):  
- Direito ao trabalho:
1. Todos têm direito ao trabalho; 
2. Para assegurar o direito ao trabalho, incumbe ao Estado promover: a) A execução de políticas de pleno emprego; (…)
Artigo 59.º - Direitos dos trabalhadores
- 1. Todos os trabalhadores, sem distinção de idade, sexo, raça, cidadania, território de origem, religião, convicções políticas ou ideológicas, têm direito: 
a) À retribuição do trabalho (…) de forma a garantir uma existência condigna; 
b) A organização do trabalho em condições socialmente dignificantes, de forma a facultar a realização pessoal (…); 
e) À assistência material, quando involuntariamente se encontrem em situação de desemprego;
 f) A assistência e justa reparação, quando vítimas de acidente de trabalho ou de doença profissional.

Cumpra-se a lei. 
Haja justiça e equidade na sua aplicação.





Nazaré Oliveira

Cidadania portuguesa



O povo português tem que se interessar muito mais sobre o que ao país diz respeito, sobre o seu povo, a Política, a Governação,  os seus direitos, os seus deveres, porque o país somos todos nós.

Não há país sem cidadãos nem mudanças que surjam sem a sua verdadeira intervenção.

Aos cidadãos tudo diz e deveria dizer respeito, porque as instituições serão o que os cidadãos delas fizerem ou o que nelas consentirem que se faça.
Porque os cidadãos serão sempre a parte mais interessada na defesa dos seus direitos e liberdades fundamentais.

Em democracia, não basta votar, muito menos não ir votar.
É preciso esclarecer, exigir ser esclarecido, saber responsabilizar, responsabilizar-se.

Porque a responsabilidade de todos em irresponsabilidade se tornará, pela acomodação ou indiferença dos que não se importam com nada exceto consigo mesmos.





Nazaré Oliveira

sexta-feira, 23 de outubro de 2015

Breve história do estado a que chegámos

breve história do estado a que chegámos

Posted by Mar Velez on Sexta-feira, 17 de Julho de 2015
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segunda-feira, 5 de outubro de 2015

Eleições em Portugal 2015 - um “case study”?





Somos um “case study” e espero que nos próximos tempos sociólogos e cientistas políticos investiguem e façam os inquéritos que nos ajudem a perceber o que se passou.
Está nos manuais políticos que um governo que pratica a austeridade que este praticou e que se apresenta a novas eleições praticamente sem promessas não renova o mandato.
Está nos manuais políticos que um partido da oposição habituado a governar não perde uma oportunidade destas para regressar ao poder e com uma margem confortável.
Está nos manuais da nossa história recente que o povo prefere as facilidades às dificuldades, prefere a ilusão à realidade, prefere o crédito à poupança, prefere mais uma auto-estrada para nenhures do que um défice mais baixo, prefere um tribunal que raramente usa à porta de casa a pagar menos impostos.
Mas este povo, desta vez, preferiu ao contrário, reconduziu aquele governo e derrotou aquele partido da oposição.
Se quisermos usar a comparação fácil que dominou a discussão europeia dos últimos anos, estamos um bocadinho mais alemães e menos gregos.
A coligação ganhou. Perdeu cerca de 10 pontos percentuais, é verdade. Mas é uma vitória indiscutível, porque a tal normalidade dos manuais apontava para a derrota certa.
O PS perdeu. Subiu em relação a 2011, é verdade. Mas há meia dúzia de meses os socialistas imaginavam que, nestas circunstâncias, até o rato Mickey derrotaria o PSD/CDS. Não aconteceu e esse excesso de confiança e uma política ziguezagueante nas propostas e no posicionamento ideológico podem ajudar a explicar a derrota.
O Bloco de Esquerda ganhou. Ganhou muito, é o único a ganhar sem um “mas…”. Duplicou a votação, consolidou a liderança actual depois de anos labirintícos e viu premiada a consistência da sua mensagem e proposta. Provavelmente, retirou a vitória ao PS.
A CDU perdeu. Ganhou um deputado, é certo. Mas o fenómeno do Bloco mostra que havia ali muitos votos de descontentes com o “sistema” para ir buscar e os comunistas não o conseguiram.
E ganharam os institutos de sondagens, claro, que nos diziam há alguns dias que isto ia acontecer – embora tenham desvalorizado a subida do Bloco de Esquerda.
Com estes resultados, os próximos tempos vão ser sinuosos mas deverão ficar longe dos cenários mais exóticos que muitos alimentaram nos últimos dias e nas primeiras horas da noite eleitoral. Uma aliança de esquerda porque a coligação de direita não teve maioria? Ganhem juízo. António Guterres completou um mandato em minoria, ou seja, com uma maioria parlamentar que não tinha votado nele. José Sócrates formou governo em minoria e assim esteve dois anos. E, lá mais atrás, também Cavaco Silva começou a sua carreira de primeiro-ministro com um governo minoritário. Em nenhum destes casos se colocou em cima da mesa o cenário de “golpe de Estado” que agora passou por muitas cabeças.
Valeu, para arrumar de vez com essas tentações, a posição de António Costa no seu discurso de final de noite. O líder do PS teve aqui um sentido de Estado que por vezes lhe falhou durante a campanha eleitoral, nomeadamente quando afirmou que votaria contra um Orçamento do Estado do PSD/CDS, ainda que não conheça o documento.
Na hora da verdade, António Costa recentrou o PS depois de o ter encostado mais à esquerda. Percebeu que a maior fatia do eleitorado não se divorciou da coligação de direita, nem depois de quatro anos de cortes. Entendeu que o caminho escolhido pela maioria da população é o da continuidade do quadro institucional e económico em que o país está: União Europeia, moeda única, contas decentes, esforço para pagar as dívidas que fizemos, alívio cauteloso da austeridade. Aventuras? Rupturas? O tempo não está para experiências.
É a continuação da normalidade, mas de uma nova normalidade. Governa quem tem mais votos e, não dispondo de uma base maioritária no Parlamento, terá de negociar apoios com outras bancadas. No caso concreto, será com os socialistas.
A partir de agora vai reinar a táctica. A próxima batalha serão as Presidenciais. Só depois disso os partidos vão fazer contas ao deve e haver de derrubar um governo minoritário que, provavelmente, não completará a legislatura.
Isso vai depender muito do que acontecer ao PS. Costa vai mesmo continuar a ser secretário-geral? Durante quanto tempo? A forma como chegou ao lugar torna-se agora o seu maior inimigo. Apeou António José Seguro porque este ganhava por poucos e mantém-se no cargo perdendo agora por muitos?
Não sabemos qual foi o primeiro telefonema que António Costa fez quando ficou com uma razoável certeza do resultado eleitoral mas ficava-lhe bem que tivesse sido para Seguro. Para lhe pedir desculpa, obviamente.

* Paulo Ferreira é jornalista e colunista do Observador