segunda-feira, 1 de maio de 2017

Memória de um 1.º de Maio futuro



Hoje, 1.º de Maio, Dia do Trabalhador, é um bom dia para sair à rua — e um bom dia para contrariar ideias feitas.
O 1.º de Maio não é só o Dia do Trabalhador, é também o Dia do Trabalhador imigrante. Convém relembrar: o Dia do Trabalhador nasceu porque, a 1 de maio de 1886, houve um manifestação operária em Chicago na qual, na sequência de uma bomba que vitimou fatalmente oito polícias, foram presos oito líderes operários (à época, anarquistas) dos quais quatro foram enforcados em novembro do ano seguinte e os outros condenados a prisão perpétua (quando se confirmou que todos eram inocentes, estes últimos foram libertados), na sequência de um julgamento político que chocou o mundo. Pois bem, dos oito “mártires de Chicago”, cinco eram imigrantes e dois outros filhos de imigrantes.
O 1.º de Maio é também um dia das mulheres e das minorias. A memória viva dos “mártires de Chicago” foi durante décadas Lucy Parsons, uma oradora inflamada que era viúva de um dos enforcados, Albert Parsons, que com ela tinha vindo do Texas. A figura de Lucy Parsons destacava-se na sociedade norte-americana de então: tendo provavelmente nascido escrava, era descendente de africanos e de mexicanos. O casamento “misto” desta jovem mulher mestiça com Albert Parsons tinha sido motivo de escândalo. A luta pela diminuição do horário de trabalho, em que ambos se empenharam, não estava separada das lutas pelos direitos das minorias e pelo simples direito a amar e a ser feliz.
Do 1.º de Maio nasceu um movimento sem fronteiras e, como diríamos hoje (e muitos diziam já então), cosmopolita. Foi logo no ano seguinte, 1887, que a II.ª Internacional proclamou o dia 1.º de Maio como Dia do Trabalhador. Esta organização, da qual nasceram os partidos socialistas, não se baseava num modelo nacional (os partidos eram simplesmente, por exemplo, a "secção francesa" da Internacional) e nas suas reuniões defendia-se abertamente a construção dos Estados Unidos da Europa que Victor Hugo e muitos outros tinham proposto (desde Garibaldi e Bakunine até Lenin e Trotsky, já agora). 
Porquê este exercício de memória? As eleições nos EUA e agora em França contribuíram para reforçar uma opinião segundo a qual não é possível conciliar a defesa dos trabalhadores com a defesa da liberdade de circulação e da construção do projeto europeu, com a promoção de uma cidadania cosmopolita que ele implica. Para quem acredita nessa incompatibilidade, há uma esquerda de “classe”, mais velha, mais branca (na UE e nos EUA) e menos globalizada que só poderia ser protegida pelo estado nacional. Os interesses desta estariam a ser descurados por uma esquerda das “identidades”, mais jovem e mais móvel, suspeitosamente sensível à sua identidade europeia. Para defendermos a primeira, teríamos de deitar fora algumas das pretensões da segunda. A história do 1.º de Maio vem lembrar-nos que isto não é assim. Desde os seus inícios, o movimento dos trabalhadores e a causa socialista foram a favor dos imigrantes, a favor das minorias e a favor da construção da unidade europeia e do cosmopolitismo. Que a União Europeia que entretanto nasceu não tenha um lugar garantido para a justiça social não a torna diferente dos nossos vários países. Os direitos sociais precisam sempre de ser conquistados e defendidos, seja no país, na Europa ou no mundo.
Aqueles que acham que para melhorar a vida dos trabalhadores seria primeiro necessário deixar cair a UE estão a cometer o erro da velha anedota irlandesa: “— como se vai daqui para ali?, pergunta um irlandês. — Oh, diz o outro, eu não começaria por aqui”. O problema político deste tipo de pensamento é que começar de outro lugar é uma impossibilidade prática. Começamos de onde estamos.
Esperar pelo colapso da UE para se poder lutar pelos trabalhadores não é doutrina do socialismo; dadas as circunstâncias atuais, é até mesmo doutrina do cataclismo.

1 de Maio de 2017, 5:40 – Rui Tavares – PÚBLICO